29 janeiro, 2009

Chico: Amores serão sempre amáveis (Final)

Seria portanto Chico Buarque de Hollanda um machista irredutível e asqueroso, que só vê a mulher como uma entidade a serviço do homem, sob sua orientação e guarda ?
Nem tanto. Ou pelo menos nem sempre. A partir da moça feia iludida com o som da banda Chico Buarque tratou de forma bem melhor as mulheres em inúmeras ocasiões, todas elas de uma beleza difícil de ser igualada.
A habilidade jamais superada por qualquer compositor vivo ou morto, em lidar com as palavras da língua portuguesa, permitiu a Chico Buarque escrever coisas como ...ela faz que não dá conta de sua graça tão singela, o pessoal se desaponta, vai pro mar, levanta a vela.
Esta belíssima frase, de uma simplicidade franciscana em sua fluência, uma riqueza barroca em sua imagem e uma complexa erudição em sua construção musical, está em Januária, uma declaração de amor praieira, por uma musa pela qual ...até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela.
Januária, junto com Carolina parecem traduzir os dois momentos de maior ternura pela mulher em toda a carreira de Chico Buarque. Carolina também trás em sua letra momentos de incrível lirismo. Carolina, nos teus olhos fundos, guardas tanto amor, o amor de todo este mundo (...) Carolina e Januária são momentos de carinho, afago, namoro, cuidado, pureza e inocência.
Outro destes momentos de reverência pela mulher está na simplicidade de Juca, uma composição que até Ari Barroso poderia chamar carinhosamente de sambinha, por sua singeleza e que vale a pena reproduzir a letra inteiramente.
Juca foi autuado em flagrante, como meliante, pois sambava bem diante da janela de Maria, bem no meio da alegria a noite virou dia, o seu luar de prata virou chuva fria, sua serenata não acordou Maria. / Juca ficou desapontado e declarou ao delegado não saber se amor é crime, se samba é pecado e em legítima defesa batucou assim na mesa: o delegado é bamba na delegacia, mas nunca fez samba, nunca viu Maria.
Bonito demais. No decorrer de sua obra, a louvação à mulher não é uma constante, embora o tema acompanhado de todo o universo que o cerca, esteja sempre presente, mesmo ou principalmente, nos instantes de mais intensa politização.
Como em Angélica feita para Zuzu Angel, que enfrentava a ditadura e seus prepostos mal humorados, mal amados, mal educados e mal resolvidos; em busca de seu filho desaparecido nas valas comuns abertas pelo país ou mais provavelmente atirado ao mar desde um decadente avião da Força Aérea, que fazia este tipo de vôo rotineiramente para “defender a Nação da ameaça comunista”. Como se eles não fossem muito piores que qualquer outra ameaça.
Nesta música Chico mescla sua admiração pela coragem de Zuzu (que morreria depois num acidente de carro tão estranho quanto o que matou Juscelino) com uma ternura tristemente respeitosa pela figura feminina. Também vale a pena rever a letra primorosa em sua íntegra.
Quem é essa mulher, que canta tanto este estribilho, só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar. /Quem é essa mulher, que canta sempre este lamento, só queria lembrar o tormento, que fez o meu filho suspirar. /Quem é essa mulher, que conta sempre o mesmo arranjo, só queria agasalhar meu anjo, e deixar seu corpo descansar. / Quem é essa mulher, que canta como dobram os sinos, queria cantar por seu menino, que ele já não pode mais cantar. /Quem é essa mulher,que canta sempre este estribilho, só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar.
Este talvez seja um dos momentos mais brilhantes da vertente política da obra de Chico Buarque e uma das raras em que a mulher está presente neste contexto. Aqui ele expõe o lado covarde dos crimes praticados por um grupo de generais desconhecedores de toda a cultura humanista mundial e de seus rumos, ao mesmo tempo em que registra a impotência da mulher como mãe diante de atrocidades como estas, com uma infinita beleza.
Existe um outro momento fascinante desta relação de Chico Buarque com a mulher, quando ele abre talvez, uma porta de emergência para a necessidade de elogiar a figura feminina e dizer o quanto precisa dela, driblando quem sabe a propalada timidez, quem sabe a própria tendência a ser econômico em elogios à mulher. Talvez para dar vazão a uma carência reprimida ele compôs Tanto Amar que também precisa da letra inteira para ser apreciada em sua sutileza inigualável.
Amo tanto e de tanto amar, acho que ela é bonita, tem um olho sempre a boiar e outro que agita. / Tem um olho que não está, meus olhares evita, outro olho a me arregalar, sua pepita. / A metade do seu olhar tá chamando pra luta aflita, a metade quer madrugar na bodeguita. /Se seus olhos eu for cantar, um seu olho me atura, outro olho vai desmanchar, toda a pintura. /Ela pode rodopiar e mudar de figura, a paloma do seu mirar vira miura. /É na soma do seu olhar que eu vou me conhecer inteiro, nasci pra enfrentar o mar, sou faroleiro. / Amo de tanto e de tanto amar, acho que ela acredita, tem um olho a pestanejar e outro me fita. / Suas pernas vão me enroscar num balé esquisito, seus dois olhos vão se encontrar no infinito. / Amo tanto e de tanto amar, em Manágua temos um chico, já pensamos em nos casar, em Porto Rico.
Aí está. Impossível tecer um poema mais surpreendente para celebrar a beleza feminina em uma manifestação pouco atraente, porém ainda assim bela. Somente o talento inconfundível de Chico e sua profunda sensibilidade, para enfrentar o tema de maneira tão arriscada, mergulhar tão fundo no conceito da beleza feminina isenta da forma e voltar de lá com uma obra prima. Sair-se bem de uma empreitada desta entretanto não exige apenas habilidade, mas um sentimento permanente de admiração pela fonte de inspiração.
Um pouco deste sentimento e do encanto diante da possibilidade do amor ou de o homem lutar por ele, emerge na magnífica Futuros Amantes onde, numa das mais brilhantes conceituações a respeito do amor, Chico afirma (...) amores serão sempre amáveis, futuros amantes quiçá se amarão sem saber, com o amor que um dia eu deixei pra você.
Irretocável. A definição “amores serão sempre amáveis” é provavelmente a coisa mais bonita que já se escreveu em língua portuguesa a este respeito. A dupla leitura que ele permite é um primor de síntese e pensamento. Assim Chico Buarque é amável, mesmo quando coloca a mulher em situações pouco privilegiadas, dentro do seu universo criativo.
Essa amabilidade sempre presente no trato com a mulher, mesmo quando a condena a um papel passivo e secundário, revela na obra de Chico Buarque um componente que se acentua quando a melodia se soma à letra: a mágoa.
Chico parece ressentido com as mulheres e suas composições dizem isso queixosa e claramente. ao tempo em que as letras são irônicas, machistas, gozadoras, cínicas ou críticas. Enquanto suas letras fustigam as mulheres, suas notas musicais a tratam com absoluta suavidade e enlevo, quase carinhosamente, talvez mostrando pra elas o quanto ele precisa delas, mesmo assim. Esta provavelmente é a combinação mágica que permitiu a Chico Buarque ir até onde foi no coração feminino.
Se tomarmos como verdadeira a tese nelsonrodriguiana de que toda mulher -exceto as anormais- gosta de apanhar; e se tomarmos também como verdadeira a réplica feminina, de que toda mulher gosta de ser cortejada, Chico matou todas as coelhas, seguindo estes dois princípios simultaneamente. Bater e afagar, num jogo psicológico que desenvolvido até o limite também pelo Marquês de Sade e que subjuga completamente o outro. O cinema e a literatura mostraram isto muito bem em inúmeras ocasiões. Este é também o método dos domadores em circos. Depois do chicote, o torrão de açúcar. As feras preferem obedecer e ganhar um doce que apenas apanhar.
Mas se formos mais benevolentes com Chico, aceitando que ele não seguiu nenhuma fórmula maquiavélica de forma deliberada para subjugar sua platéia feminina e acharmos que ele apenas fez o que lhe deu vontade de fazer, aí então fica evidente que ele falou com todas as suas representantes, batendo em quem gosta de apanhar e afagando quem se enrosca e chega pro lado, querendo agradar, como disse Caymmi (música João Valentão). Agradou a gregas e troianas. Mulheres de Atenas e Januárias, portanto.
(Este estudo de parte da obra de Chico Buarque foi desenvolvido por mim sem qualquer pretensão acadêmica ou analítica. São apenas as impressões de um incondicional admirador do trabalho deste artista único na arte brasileira.)

2 comentários:

Escrevendoespanando.blogspot disse...

Rapaz, cheguei a uma conclusão perante Chico Buarque: Ele é objeto de desejo feminino porque as despreza.

Helena disse...

Também pensava isso do Chico, mas você sabe escrever melhor que eu não sei organizar meu pensamento em palavras. Só que na verdade, eu acho que ele expõe essas coisas sobre a realidade feminina não por maldade, mas talvez como crítica, até porque sua querida ex-mulher não era esse modelo de mulher submissa e espancada. Se ele expressa rancor em suas palavras, o que concordo, você não deixa de expressar um pouco de inveja. Diferente das outras mulheres não sou dessas que gostaria de dar para ele (não estou bem certa disso), mas concordo que 90% sim. Ele era bonito, rico, inteligente, charmoso, tinha olhos verdes, e era cantor, normal toda mulher gostaria de dar pra ele, assim como todo homem gostaria de comer umas tantas por aí. Gostei muuuito do seu texto. Faz parte!