23 julho, 2009

O Inferno São Os Outros

Devo ter assistido o filme Constantine uma dezena de vezes. Nele diversas coisas me fascinam, desde a morte anunciada pelo câncer de pulmões –sou fumante inveterado de 40 cigarros por dia, em média- até a morte resgatada e que dá origem a toda história do filme.
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O roteiro é muito criativo. Constantine esteve morto por alguns segundos, após um acidente e antes que os paramédicos o trouxessem de volta à vida. Porém, nestes breves segundos de morte ele foi parar no inferno e como por lá o tempo não existe, sua permanência no reino de Satanás corresponde a uma eternidade. Ele então pode conhecer os demônios mais influentes do grupo, os demônios comuns e aqueles que possuem por missão buscar almas que ainda habitam corpos em trânsito pelo planeta.
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Pior de tudo: Constantine ao voltar consegue reconhecer essa turma quando ela está pelas ruas da cidade. Ao mesmo tempo em que tenta negociar com as lideranças das profundezas para não ter que retornar quando morrer definitivamente, Constantine também se dedica a caçar aqueles que ficam aliciando almas por aqui.
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Outra coisa que me fascina é a beleza andrógina do anjo Gabriel, que vive aparecendo à Constantine para convencê-lo de que sua luta é inútil e que ele voltará ao fogaréu eterno, levado inclusive pelo próprio Belzebu, que virá pessoalmente buscá-lo quando chegar o momento.
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Aí eu me pergunto: será mesmo necessário morrer e ressucitar para perceber que o mundo das trevas pode ser acessado a qualquer instante aqui mesmo? Na próxima esquina pode surgir em nossa frente um representante de Satã com uma arma na mão e transformar a nossa vidinha rotineira num inferno sem hora para terminar. Um pedaço da eternidade, como viveu Constantine.
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Um exemplo mais simples: você chega do trabalho cansado, pensando em entrar em casa, tirar a roupa e recompor suas forças. Mas ao abrir a porta, você é soterrado por problemas de todas as espécies. Desde o botijão de gás que acabou e o reserva também está vazio até sua filha mais nova que ameaça o suicídio porque a mão não permitiu que ela fosse ao cinema com as amigas, passando pelo micro ondas que quebrou, a conta do cartão que chegou depois do vencimento e a imprevisível TPM de sua santa esposa.
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Sartre já dizia; o inferno, são os outros.
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Caso o nosso cotidiano fosse um filme, certamente o público seria próximo de zero, mas ele é real e tenha público ou não, sentimos na pele todos os seus efeitos. Viver é partilhar o tempo presente com todos os demônios que passeiam por aí, seja no trabalho, nas ruas, nos shoppings ou em nossa casa. É tentar identifica-los e neutraliza-los sem ter a experiência de Constantine para reconhece-los de longe.
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Aquela mulher sensual que surge de repente na sala de espera do dentista e te seduz escancaradamente. Vira um inferno. Aquele software inocente que v. baixa da internet para se proteger de ameaças digitais. Vira um inferno. Aquela oficina autorizada onde você resolve levar seu DVD player para fazer uma limpeza. Vira um inferno.
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Tudo isso enquanto Deus sorri zombeteiro nos observando de longe, da confortável e espaçosa varanda dos céus.
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Então você dá uma de Constantine: faz promessas, jura parar de fumar, acender velas para os santos do dia se as coisas melhorarem um pouco e ouve como resposta a mesma coisa que Constantine ouviu: Deus não faz negociações. Deus é Deus.
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Acho que por isso mergulho nos filmes e os vivo como se estivesse também alí na tela. É uma forma de ter certeza de que, por mais complexo que seja o inferno que nele está contido, depois de 90 e poucos minutos a gente sai dele. O que quase nunca acontece na vida real.