30 dezembro, 2008

Chico Buarque é severo. (Parte 2)

Antes da consagração de A Banda, vencedora de um dos grandes festivais de música brasileira -no tempo em que ainda havia festivais e música brasileira- Chico Buarque já fazia sucesso com Pedro Pedreiro, uma de suas primeiras músicas gravadas. Mas ali sua referência à mulher era muito rápida, posicionando-a apenas em sua função reprodutora. (...) e a mulher de Pedro está esperando um filho pra esperar também... E pronto. Este parece ser o ponto de partida para uma visão crítica extremamente severa do papel feminino, através dos personagens de sua música, que se repetiria ao longo de sua obra com enorme freqüência.

Mais adiante, confirmando este papel de coadjuvante, a companheira do operário da construção civil seria mais uma vez citada em sua obra. Em Construção ela reaparece rapidamente. Beijou sua mulher como se fosse a única (...) a última (...) lógico, (...) em versos que reforçam esta posição feminina secundária de ou mera figurante da ação e mantém as mulheres, ou pelo menos até aqui as mulheres de pedreiros, nesta condição. A visão total da mulher submissa seria assumida plenamente por Chico em Cotidiano onde ela aparece de corpo inteiro. Talvez se trate da mulher ainda deste mesmo tipo de trabalhador, o pedreiro, pelos detalhes da sua vida, como a hora de acordar e o almoço, descrito na magnífica letra. Mas pode também ser a mulher de qualquer operário. Todo dia ela faz tudo sempre igual, / me sacode às 3 horas da manhã, / me sorri um sorriso pontual / e me beija com a boca de hortelã. / Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar / e estas coisas que diz toda mulher, / diz que está me esperando pro jantar / e me beija com a boca de café. / Todo dia eu só penso em poder parar, / meio-dia eu só penso em dizer não, / depois penso na vida pra levar / e me calo com a boca de feijão. / Seis da tarde como era de se esperar, / ela pega e me espera no portão, / diz que está muito louca pra beijar / e me beija com a boca de paixão. / Toda noite ela diz pra eu não me afastar, / meia-noite ela jura eterno amor / e me aperta pra eu quase sufocar / e me beija com a boca de pavor. A submissão aí é clara, sem metáforas. A mulher cumpre todas as suas supostas obrigações domésticas, de companheira e fêmea, motivada explicitamente pelo pavor de que o seu parceiro a deixe. Este pânico pela perda do parceiro, já fora do universo dos tijolos e cimento, encontra sua expressão máxima em outra obra prima, criada anos depois e imortalizada por Elis Regina: Atrás da Porta. A mulher ao perceber no companheiro que (...) e o teu olhar era de adeus (...) me arrastei e te arranhei e me agarrei nos teus cabelos, nos teus pelos, teu pijama, nos teus pés, ao pé da cama (...) no tapete, atrás da porta, (...) te adorando pelo avesso, só pra provar que ainda sou sua. Aí ela se anula plenamente, rasteja pelo chão onde o homem pisa, ocupa o lugar da vassoura atrás da porta e desaparece. A esta altura, a condição da mulher de criatura submissa na música de Chico Buarque já estava consolidada e finalmente deixou os lares formados por pedreiros e outros operários para se espalhar por diversas outras áreas da sociedade, ainda que, por enquanto, presa ao cosmo do proletariado.

Ela, a submissão, passa a estar presente como condição contínua da mulher em diversos momentos e situações, mesmo que cercada de romantismo, como em Com Açúcar Com Afeto (...) fiz seu doce predileto, pra você parar em casa. Agora o homem já é um possível mecânico, pois ela diz adiante (...) no caminho da oficina há um bar em cada esquina, pra você comemorar, sei lá o que. O final da música dispensa comentários: Quando a noite enfim lhe cansa / você vem como criança, pra buscar o meu perdão / e ao te ver assim cansado, maltrapilho, maltratado, ainda quis me aborrecer / qual o que / logo fui esquentar seu prato / dou um beijo em seu retrato / e abro meus braços, pra você... Um brilhantismo único em poesia e melodia embora extremamente machista. E nem existem mulheres assim. Que se há de fazer. Até no próprio universo da música, no mundo do sambista, encontram-se indícios desta atitude de Chico em relação ao feminino. Em Amor Barato, por exemplo quando se pede à mulher amada (...) vem cá meu amor, agüenta o teu cantador, me esquenta porque o cobertor é curto ou ainda, na mesma música (...) nosso amor também pode ter seu valor, também é um tipo de flor, que nem outro tipo de flor, um tipo que tem, que não deve nada a ninguém, que dá mais que Maria Sem Vergonha. Mesmo quando é o homem que se dá mal no enredo das músicas de Chico, sempre existe uma insinuação a respeito da submissão e dependência femininas. Como na incomparável Trocando em Miúdos, em parceria com Francis Hime, na qual o homem é rejeitado e sai com a impressão de que já vou tarde, mas pede de volta (...) o Neruda que você me tomou e nunca leu e mais enfaticamente sugere que ela (...) aceite uma ajuda do seu futuro amor, pro aluguel. Embora Chico aceite que ela já tenha evoluído um pouco, a ponto de chegar a pegar emprestado um Neruda, mesmo que nunca o tenha lido, a falta de intimidade da mulher com a cultura e sua incapacidade de manter-se por conta própria são insinuadas de forma bela, porém extremamente poderosa em seu desprezo, escondida magistralmente pela força da ironia. Curiosamente, tudo isso sempre levou e continua levando as mulheres ao êxtase. Talvez Nelson Rodrigues realmente estivesse com a razão. Continuamos depois com estas interpretações e outras citações muito mais severas. Chico também continua batendo firme e suave.

14 dezembro, 2008

Chico Buarque: Nelson Rodrigues com um violão (Parte Um)

Não sou biógrafo nem crítico de música. Não sou antropólogo cultural, não sou feminista militante nem pretendo denunciar nada. Até porque eu e Chico Buarque já quase fazemos parte do passado. Gosto de música e considero Chico Buarque -ainda- o maior compositor brasileiro de todos os tempos. Sei que interpretações estão sempre sujeita a erros. O que alguém pensou e disse pode ser completamente diferente daquilo que o outro escutou e entendeu. O conceito formado pode estar na mente do receptor e não do emissor da idéia. Este é um risco que corro. Quem não concordar com o que vai ler adiante desde já se sinta à vontade para as primeiras pedras. Este trabalho, dividido em seis partes, não pretende ser científico, social, sequer musical. São só registros e impressões de um ouvinte atento do compositor e do que ele disse. Não me interessa quem acabou o casamento de Chico (na verdade acho que foi Carlinhos Brown), porque ele torce pro Fluminense ou insiste em achar Cuba um exemplo de sociedade. Isto é papo de quem estudou na Rua Dª. Antonia nos anos 60. Fernando Henrique também passou por lá, mas a vida os colocou em papéis diferentes. Ainda bem. A machismo de Chico a que me refiro tem a ver com a minha, a sua mulher. A mulher que passa pelo corredor do shopping sem se ver refletida nas vitrines, que não se ilude quando o filho sai na página policial e que manda o marido à merda quando ele chega em casa com oito amigos pra almoçar. A mulher que na vida real chama a mim e a você de machão. Mas que desmaiava quando via Chico Buarque de Hollanda chegando com “aquellos ojos verdes”. Porque a vida, infelizmente, não tem o mesmo encanto que a arte. TODA MULHER JÁ SONHOU EM DAR PARA CHICO BUARQUE. A moça feia debruçou na janela, pensando que a banda tocava pra ela. A partir desta frase meio cruel escondida na letra de A Banda, Francisco Buarque de Hollanda iniciava um conturbado relacionamento público com o universo feminino, relacionamento este que se revelaria com o tempo, de extrema riqueza e constante aperfeiçoamento. Importante também é considerar o efeito que Chico Buarque provocou no coletivo feminino brasileiro embora jamais tenha se posicionado como um compositor romântico, um Roberto Carlos, por exemplo. Ao contrário. A primavera criativa de Chico Buarque se situou entre os meados dos anos 60 até os anos 80, acompanhando a longa noite de terror e crimes que se abateu sobre o Brasil a partir de 1964. A sua luta contra a ditadura foi um dos momentos mais ricos da cultura brasileira, quando junto com outros intelectuais de diversas áreas do conhecimento, usou do talento e da criatividade para atingir os brasileiros fardados que insistiam em calar e matar os brasileiros sem fardas. A intenção romântica de Chico neste período é esporádica, eventual. Quando a repressão achou que podia calar idéias com baionetas, Chico sob o pseudônimo de Julinho de Adelaide, atirou algumas das suas mais preciosas e poderosas pedras no telhado dos militares sem que estes, como era de se esperar, sequer percebessem. Mesmo sob o disfarce do nome e ainda mais dedicado ao combate político, Chico Buarque entretanto aqui e ali pontuava suas obras de um sotaque de romantismo inevitável para quem desenvolveu a sensibilidade ao ponto em que ele o fez. Talvez este conjunto de características de sua obra, aliada ao conjunto de características da sua personalidade, tenha estabelecido a sintonia entre a sentimento feminino e o seu sentimento, embora sua obra esteja longe de ser uma homenagem explícita à mulher como foi a do feminista Gonzaguinha. A receita reunindo temperos tão díspares como intelectual, guerrilheiro urbano, tímido, misteriosos olhos verdes, talentoso, bom de copo, fã de futebol, fiel em teoria à única esposa e polígamo na prática, paizão assumido e galinha de carteirinha, deu certo. Sendo ainda capaz de alinhar de forma desconcertante as palavras e as notas musicais com o aval, a cumplicidade e o sorriso paternal de Tom Jobim, não podia dar errado. Mas, pergunto: porque as mulheres nunca foram tão severas em relação à ótica do trabalho de Chico a seu respeito quanto o foram com Paulinho da Viola, por exemplo? O príncipe do morro com sua refinada presença, música primorosa, beleza masculina brasileira, elegância que resiste ao tempo, o charme de ser do morro e falar manso, jamais provocou lágrimas femininas e muito menos desmaios. E seu trabalho tem lirismo suficiente para isso. Já o paulistano Chico fez a platéia feminina do Teatro Castro Alves em Salvador (nos 80 do século passado), repetir cenas somente vistas em platéias dos Beattles. Mas aquele pessoal de Liverpool tinha mesmo a intenção de incendiar a meninada enquanto o gentil Chico, aparentemente não. Em cena parecia estar com medo daquilo tudo e tocava o violão com seu cigarrinho aceso entre o dedo mínimo e o anular da mão direita –o que já era motivo para declarações de paixão eterna- como se todo aquele escândalo, lágrimas, desfalecimentos e cabelos arrancados não fora por ele. Na mesma noite, na pequena boate do Yatch Clube, dezenas de distintas senhoritas literalmente se arrastaram pelo chão até ficar -mais uma vez literalmente- a seus pés, enquanto old green eyes cantava num show intimista. Mas aí já era muito mais tarde; muitas canções e muitos uísques depois. Chico já misturava a letra de Carolina com a de Januária, a platéia já misturava arte e realidade e a madrugada já misturava a noite com o dia. E o mistério da sedução machista estava apenas começando.

07 dezembro, 2008

Cadeia neles.

Leio na primeira página de um destes jornais que diariamente nos enchem de tédio, tristeza e incredulidade, a notícia de um empresário que foi condenado pela justiça por falsificação de notas fiscais e desvio de dinheiro. Até aí, tudo bem, isso é normal. Mais adiante a notícia é surpreendente: “...o empresário e jornalista M.L.O. foi condenado a quatro anos de cadeia. Ele cumprirá a pena em liberdade.” Custo a acreditar, mas está lá assim mesmo. Cumprirá a pena em liberdade. Chegamos então a um ponto inédito da ordem social no Brasil, deduzo. Para a recuperação de um criminoso, o sistema está tão perfeito que não é necessário sequer botar o sujeito no xadrez. Em liberdade mesmo ele “cumpre a pena” e está resolvido. Talvez nem seja só isso, talvez estejamos assistindo ao vivo a coroação de uma nova moral. O próximo passo deverá ser enfiar na cadeia todo mundo que não foi condenado por nada. O que é compreensível num país onde o crime passou a ser diploma de inteligência e poder. Lampião, Escadinha, Leonardo Pareja, Fernandinho Beira Mar e tantos sabiam muito bem disso, invejados que foram pelo povo, estes incompetentes que jamais conseguiram cometer um crime importante. Cadeia pra eles, o povo, claro. Onde já se viu num país de criminosos, alguém querer andar certinho, pagar em dia, emitir notas fiscais verdadeiras e entregar dinheiro a quem de direito? É crime contra a ordem pública. Nunca esta expressão esteve tão coerente com a realidade. Se a ordem pública é o crime, cadeia para quem está fora da ordem, para quem é honesto. Nada mais lógico. Quando é normal roubar no peso, no preço, no prazo, nos juros, na qualidade, na validade de tudo que é vendido; roubar na competência, no orçamento, no valor, na execução e na eficiência de todo serviço prestado; roubar a impiedosas canetadas o patrimônio público municipal, estadual e federal; roubar à bala o patrimônio privado ou a própria vida de quem tem alguma coisa; roubar até o pensamento e as idéias de outros e vencer concorrências milionárias; quando tudo isso vira uma prática conjunta, cotidiana, continuada, coletiva e completa; quem fica fora deste sistema evidentemente quer prejudicar o país. Cadeia com eles. Os prejuízos causados pelos honestos são incalculáveis. O país ainda não se recuperou do estrago provocado por aqueles se recusaram a participar (ou não foram admitidos) da República das Alagoas e puxaram um cordão que acabou derrubando o alucinado Fernando Collor. Quanto custou para a gestão do crime reorganizar-se, rearticular-se, substituir nomes, bancos no exterior, sistemas de roubo, enfim, toda uma tecnologia já desenvolvida e que funcionava perfeitamente ? Reciclar a maravilhosa engrenagem das contas fantasmas, uma contribuição concreta da economia para o progresso nas últimas décadas, custou. Custou muito sacrifício e muito tempo perdido. Se a secretária e o irmão de Collor, ensandecido de ciúmes, tivessem sido encarcerados logo no início em julgamento sumário nada daquilo teria acontecido e hoje certamente estaríamos mais adiantados quem sabe à frente da China. Collor já teria privatizado até a Casa da Moeda que poderia vender notas de 50 por quanto bem entendesse. Todos nós sabemos que uma nota de 50 não vale nem 20. Várias casas da moeda poderiam estar competindo no mercado em economia aberta, cada qual imprimindo reais mais bonitos e mais baratos e vendendo-os por preços mais baixos que os atuais do Governo. Quando finalmente a máquina voltou a funcionar -apesar de diversas tentativas ao longo deste tempo de impedir a organização do crime- aparece a imprensa e abre a caixa preta de Marcos Valério, revelando mensalões, cuecas dolarizadas e outros avanços gerenciais. Novo atraso rumo ao funcionamento ideal. Sem isso a folha de pagamento de Marcos Valério já poderia incluir até um parente nosso, quem sabe. Agora, em pleno processo de recuperação de sua situação de estabilidade, novo ataque dos honestos. Querem prender Daniel Dantas porque ele não se contentou em ser assinante da Oi ou da Vivo e pagar uma fortuna todo mês por um celular que não funciona. Ele se ofereceu em holocausto para controlar o sistema sozinho. Entretanto, presunçosos e perigosamente em liberdade, os elementos honestos mais uma vez emperraram por diversos anos o avanço do sistema social brasileiro. Quem sabe quando a corrupção estará ao alcance de todos, sem os eternos denuncistas de plantão? Mas a gente chega lá. O exemplo de M.L.O. que acaba de garantir a liberdade por seus crimes, nos enche de esperança. Cadeia para quem não rouba e nem deixa roubar. E salvemos o lindo pendão verde da esperança, salvemos o dólar, símbolo augusto da paz.

29 novembro, 2008

O Anjo Exterminado e o Anjo Exterminador

Às quatro da manhã, Rodrigo Sá Menezes convidava educadamente os boêmios mais renitentes a saírem da sua boate, o Anjo Azul, lindamente decorada com painéis enormes de Carlos Bastos. João Ubaldo Ribeiro protesta, toma os últimos goles de seu cuba libre e sai caminhando tranqüilamente pela Rua do Cabeça, cumprimentando os feirantes, atravessa o Largo 2 de Julho e mergulha no Sodré em direção ao Mercado Modelo, onde chega após uma pequena parada na casa de Maria da Vovó, pra ver umas amigas. No Mercado, já comendo o sarapatel de Bio, encontra o mestre Jorge Amado que conversa animadamente com Carybé e Mario Cravo, todos cercados por verduras e frutas. Silenciosa, Irmã Dulce passa recolhendo contribuições para seus pobres. Ruy Espinheira, Caetano e Gil, quietos num canto, escutam atentamente, recolhendo cada pedaço de sabedoria que escorregava das mesas. João Ubaldo junta-se a eles e começa a manhã de mais um sábado na cidade do Salvador. A cena, exatamente assim como está descrita, pode nunca ter acontecido, porém com algumas poucas variações e outros personagens tão ilustres quanto estes, certamente repetiu-se inúmeras vezes nos anos 50 e até quase o final dos 60. Rodrigo Sá Menezes, hoje publicitário, era proprietário do Anjo Azul, boate que reunia a inteligentzia e a boêmia baianas, em noites que atravessavam a quietude da cidade para desembocar no Mercado Modelo ou na 7 Portas, entre violões, poesias, grandes debates culturais e felicidade geral. O Anjo acabou e acabaram os intelectuais, a boêmia, o samba canção, as poesias, a quietude, a madrugada silenciosa, as casas das meninas e os saveiros chegando na rampa da manhã. Hoje, a noite de Salvador amanhece resfolegante, exausta diante de gols mil tocando axé music pelo porta-malas, explodindo a nova música sertaneja –o muar do sertão- em decibéis histéricos, em cocaína, engarrafamentos em portas de barzinhos sem caráter e prostitutas amadoras. Entulhada de restos de pizzas hut, big-macs, camisinhas, latas de cerveja, red bulls, e freqüentemente, sangue, muito sangue. Sem qualquer charme. Sem o mínimo vestígio de sentido, sabedoria e propósito. Com os pés em cima da poltrona no cinema, a provocação diante de tudo ou o olhar anestesiado diante da boquinha da garrafa, seja ela qual for e sirva para o que servir. Quantos novos Jorges, Ubaldos, Ruys, Caetanos, Gils e Carybés sairão da noite baiana de hoje ? Nenhum. Quem escreve, quem compõe, quem pinta, quem pensa ? Ninguém sabe. Se existem, não estão mais disponíveis como se costumava encontrar pelas madrugadas. Estão certamente enclausurados em suas casas, vagando na Internet ou refugiados em algum lugar seguro. Longe da horda amorfa e por isso mesmo escandalosa, que povoa a noite sem fazer a menor idéia de pra que ela existe. Houve um tempo, muito remoto, em que a noite trazia o medo do desconhecido e por isso os homens primitivos reuniam-se em bandos, faziam fogo e barulho até o amanhecer para espantar o perigo, as feras, os espíritos do mal, parecendo mais ou menos com o que acontece hoje. Depois o homem evoluiu e tornou-se íntimo da noite, retirando dela as respostas para as mais inquietantes perguntas, deslizando mansamente até a barra de novo dia e de uma nova descoberta. A observação da mecânica celeste abriu horizontes e o homem, percebendo-se parte de um sistema perfeito, procurou de diversas formas, a perfeição. A noite inspirou poetas e trovadores, os astros revelaram os mais escondidos segredos da alma e a bruma de cada novo dia revelava um mundo sempre em renovação. Quem sabe hoje estamos recomeçando um ciclo, quem sabe estamos tentando espantar novos fantasmas com a mesma fórmula dos velhos tambores, corpos pintados, danças tribais e rituais exóticos. Quem sabe serão os habitantes da nova noite, os homens modernos que primeiro perceberam a necessidade de voltar ao princípio paleolítico. Quem sabe o Anjo Azul tenha sido apenas um equívoco, apenas uma visão um pouco mais bem acabada das antigas cavernas e suas figuras rupestres, sem serventia alguma. Quem sabe a nova verdade não está nas vagas disputadas a tapas na frente das lojas Select. Talvez o novo ciclo de civilização seja essa violência e essa mesmice que se vê compulsoriamente por aí. Não sou arauto do passado, nem nasci há 10 mil anos atrás. Mal cheguei aos 60. Sou apenas um maior abandonado, um senhor de rua; sem estatuto, sem proteção e sem mais ter onde passar as noites.

14 novembro, 2008

O Zippo, o pocket Nº 1 e a ambivalência.

Houve um tempo em que uma mulher tinha certeza de estar diante de um homem, quando ele sacava do 1º bolso –aquele pequeno e dianteiro- de seu jeans Lee ou Levis, um reluzente isqueiro Zippo e acendia um Marlboro ou um Lucky Strike. De preferência riscando a perna da calça com o isqueiro. A sociedade em sua mutação constante mais recentemente oferecia à mulher, como arquétipo de homem, aquele sujeito desajeitado e de óculos, roupas surradas, barba por fazer, um exemplar do Le Monde debaixo do braço e os dedos amarelados pela nicotina dos cigarros Gauloises. Sem filtro. Woody Allen exagerou um pouco, mas era quase isso. Hoje, quando fumar tornou-se um ato quase criminoso e os fumantes vagueiam mundo afora em busca de um cinzeiro, como palestinos atrás da terra permitida, o estilo masculino resume-se em andar por aí com uma lata de Redbull bem visível e um som ensurdecedor na mala do carro. Humphrey Bogart, James Dean, Marlon Brando, Richard Burton, Lee Marvin, John Wayne e outros, hoje não passariam de repulsivos seres de costumes primitivos e perigosos para esta sociedade politicamente correta, hipoteticamente saudável e terrivelmente chata. Modelo de homem hoje, como disse Chico Buarque sobre a nata da malandragem, não existe mais. A AIDS briga nas estatísticas com o câncer de pulmão e o enfarto. A dengue e a direção praticada pelos não-fumantes alcoolizados, mata mais que tudo isso junto. A condição prolongada de estresse nas cidades abre as portas para qualquer doença. Claro que nada disso é científico, tudo se baseia instavelmente em números nem sempre confiáveis e quase sempre manipulados. A medicina –que hoje é uma ciência estatística- continua afirmando não ter compromisso com resultados, mas sim com métodos. Mas uma coisa é certa: a hipocrisia mata muito mais que tudo isso junto. Porque ela acaba com a dignidade e esta é uma coisa que quando se perde, além de ser para sempre, leva também outros valores indispensáveis à vida saudável em seu sentido mais amplo, que é o da saúde moral, o grande laboratório das manifestações saudáveis ou doentias do organismo. Em nome de uma suposta saúde física acabamos por abandonar a saúde dos relacionamentos e da própria sociedade. Desde que começamos a habitar este planeta, comemos, bebemos e fumamos de tudo. O churrasco é a primeira invenção culinária do homem primitivo, ao descobrir que o fogo tornava a carne dos animais um pouco mais agradável e menos indigesta. Ainda hoje povos se alimentam de insetos, o sushi desafia o cólera e pratos de sarapatel são disputados nas madrugadas baianas. Fuma-se cigarro de palha, de fumo de corda, de cravo, de alface, de maconha; fuma-se ópio, cachimbo, crack e tudo que possa ser queimado e fazer fumaça. Bebe-se chá de tudo e o álcool, produzido até de arroz, é vendido e bebido livre e alegremente. Bebemos sucos de qualquer coisa que possa ser liquidificada, desidratada e reidratada. Bebemos até Coca-Cola, que ninguém sabe ao certo o que é. E sobrevivemos. Sobrevivemos à Santa Inquisição, a duas Guerras Mundiais, uma Guerra Fria, ao Vietnã, às Malvinas, ao Canal de Beagle, ao Cambodja, ao Antrax, ao Iraque, a Bin Laden e milhares de outras ameaças. Também sobrevivemos à gripe espanhola, à tuberculose, ao tifo, à difteria, à diarréia e a cerca de 50 mil McDonald’s espalhados pelo mundo. Mas certamente não sobreviveremos como pessoas, às ONG’s montadas para arrancar dinheiro de governos coniventes; às religiões que arrancam os últimos tostões dos já pobres fiéis; aos empresários preocupados exclusivamente com o próprio bem estar; aos políticos que odeiam o povo; à imprensa comprometida com interesses multinacionais; a certos amigos que degradam todos à sua volta; ao mau-caratismo, à falência de valores morais, à falta de pensamento e noção de honradez; à mentira absoluta, ao egoísmo e ao desprezo pelo gemido de dor ou solidão que vem do apartamento ao lado. Ninguém tem carimbado na testa: “O Ministério da Saúde adverte: esta pessoa possui mais de 4.700 componentes nocivos ao relacionamento, e hipocrisia que causa dependência física ou psíquica.” Pois tudo isso mata e é contagioso. Isso mata a mim, a você; matará nossos filhos e os filhos deles. Porque as manchas da alma são infinitamente mais corrosivas que as do pulmão.

05 novembro, 2008

Obama Inc.

Creio que dificilmente eu seria eleito vereador pelo bairro da Liberdade, aqui mesmo em Salvador. Sou branco e por lá nem bloco de carnaval aceita gente como eu, sem uma cor que tenha simbolismo político. Acho isso engraçado; o bastar possuir uma determinada pigmentação de pele para se tornar um símbolo de uma ideologia política ou social. Mas Obama está na Casa Branca. Desculpem, não é uma piada ou uma provocação com traços racistas. É o fato. O novo presidente norte-americano é negro e o palácio de onde ele irá governar chama-se White House, ou seja, Casa Branca. Ao menos, por enquanto. Não quero falar sobre racismo escancarado ou velado, nem lá nem cá. Minha dúvida é outra. Porque o povo americano fez sua escolha dando peso 8 (numa hipotética escala de 0 a 10) à cor do candidato; assim como o povo brasileiro também deu peso alto ao despreparo escolar e cultural de Lula há oito anos atrás? Qual é o aval existente para que critérios assim possam fazer as pessoas anteverem uma linda paisagem depois da curva? Kennedy era branco e muito culto. Fez um governo magistral. Bush é branco e bronco. Enterrou os Estados Unidos num lodaçal econômico e social. A lista de ditadores negros que fizeram da África um continente estacionado na Idade Média é longa. Nelson Mandela também é negro e lançou luz sobre o problema escancarando-o para o mundo. Winston Churchill fumava o tempo todo, bebia em jejum e se empanturrava de presunto. Estava a jardas de distância do padrão fleumático do comportamento britânico e das características esperadas de um chefe de estado. Salvou a Europa da destruição completa na 2ª Guerra Mundial. Adolf Hitler era vegetariano, abstêmio, apreciador de arte e possuía uma disciplina espartana. Além de, segundo alguns dos seus biógrafos, ser afável e liberal na intimidade. Quase eliminou a Alemanha da geografia mundial. Poderia seguir citando dezenas de exemplos, mas não é necessário. Intriga-me o fato de que negros americanos com Luther King e Jesse Jackson sempre defenderam os direitos naturais de seu povo contra a intolerância racista, mas sem buscar a Casa Branca, enquanto Obama desde o início de sua vida adulta voltou-se para a política. Obama, como qualquer cidadão com um nível mediano de informação, em qualquer parte do mundo, sabe que as decisões de um presidente passam pelo congresso e que por trás deste estão gigantescos interesses econômicos multinacionais. Esta não é uma conseqüência contemporânea e direta da globalização, como pensam muitos. Sempre foi assim. Simplesmente eram menos abrangentes. O que Obama poderá fazer para reduzir as diferencias sociais –reparem bem que não estou falando de diferenças raciais- existentes em seu país é praticamente o mesmo que vem sendo feito há séculos lá mesmo e em todo o mundo. Ou seja: quase nada. Excluindo-se uma Finlândia aqui, uma Suécia ali, um emirado acolá, o mundo inteiro é um imenso campo de batalha entre os que têm muito e os que têm muito pouco. Há muito tempo. Inclusive na natureza, onde a sabedoria popular foi buscar a expressão “a parte do leão”. Sobrevivem os mais preparados. Darwin já sabia disso e nunca ousou atribuir a relação existente entre a teoria da evolução e o cenário político e histórico do planeta. Já estava bastante massacrado por insinuar que os macacos poderiam ser nossos parentes. Então, porque acreditamos que um Lech Valessa pode de repente transformar a Croácia num paraíso dos proletários? Porque alguns seguem acreditando que Fidel é bom para Cuba até hoje? Porque os americanos choram de emoção achando que Obama chegou para operar milagres? Acho que isso tem um nome. Esperança. Fé. Algo indefinido que não está presente na teoria evolutiva de Darwin nem no pensamento de enorme parte da humanidade. Mas que existe assim mesmo; sem comprovação científica, sem diplomas, sem sotaques, sem cor.

20 outubro, 2008

Bons de bola e bunda.

Num país onde as oportunidades de crescimento pessoal são extremamente limitadas, especialmente para os jovens das classes sociais mais vulneráveis, o menino que sabe jogar bola e as meninas bonitinhas/gostosinhas vêem nestas condições, uma estrada que pode levá-los à fama, ao conforto; aos benefícios que os ricos das novelas exibem diariamente no horário nobre da tv. Acontece que por ironia, meninos que jogam bola legal e meninas gostosinhas, é o que não falta neste mesmo país. Daí, está armado um cenário no qual Shakespeare poderia deitar e rolar para elaborar suas tragédias amorosas. Porque meninos que batem um bolão ou meninas que detonam na configuração, queiram ou não queiram, são apenas e ainda, meninos e meninas. A mídia incentiva, estimula os sonhos, mostra os bola murcha e os bola cheia, revela as curvas monumentais de criaturas desconhecidas. E eles e elas, continuam sendo meninos e meninas. Assim, quando uma menina de arrasar quarteirões faz essa demolição em quarteirões suburbanos, está na verdade e quase sempre, à espera de uma oportunidade qualquer, uma acaso que a leve ao banco do carona de um cara que é amigo de alguém que tem um parente na Globo e quem sabe pode levar um papo com ela. Enquanto este carro e esta possibilidade -ambos remotos- não chegam, elas seguem nas salas de aulas, nos pagodes do fim de semana, nas calçadas do bairro, mexendo com o sentimento de meninos que não jogam bola tão bem a ponto de só pensarem nisso. Meninos que acreditam ser possível arrumar um empreguinho, uma mulher bonita que cuide da casa e dos filhos e serem felizes para sempre. Eles ainda existem, sim. A estes, a gostosinha que espera seu momento BBB representa um perigo fatal. A razão lhe diz que não é por ali, mas os hormônios e a herança do macho reprodutor forçam a barra e lá vai ele atrás da futura capa da VIP. Dançou. Porque ela não quer nem saber de empreguinho, nem de casamento, muito menos de crianças chorando e fazendo xixi nos lugares mais inaceitáveis. Meninos e meninas continuando a ser, ela faz o joguinho de manter a auto-estima 100% preenchida e ele acredita naquele afago a cada três meses como uma visão do paraíso. Até que um dia a coisa explode. E quando explode, sobra para todos os envolvidos, como aconteceu em Santo André. Inclusive para os meninos que vestem uma farda e acreditam seriamente serem da SWAT. Quem não é mais menino nem menina, como eu e você, fica chocado e começa a procurar um culpado. É difícil de achar. Teríamos que ir buscar as raízes de tudo isso muito lá atrás, desde a escravidão, passando pela miscigenação, pela seqüência Monarquia - República - Ditadura -Nova República - Ditadura II- Nova República II e tudo que isso implicou, especialmente em relação à educação de meninos e meninas, aos novos formatos de família e ao relacionamento entre pais e filhos; resultante do lar-dormitório, onde pai, mãe e agregados apenas dormem –às vezes nem isso- para continuar o dia seguinte no mercado de trabalho, na batalha para sobreviver mais um mês. Em seguida, precisaríamos destilar o biótipo do brasileiro que emerge de tudo isso e deixa-lo exposto às revoluções mundiais de costumes que aconteceram depois, avaliando os efeitos da assimilação dos mimos do primeiro mundo descobertos via globalização. É dificílimo. Shakespeare talvez perdesse o fio da meada. Afinal, a tragédia resultante de um romance proibido pela rivalidade entre famílias é muito mais normal. Difícil é compreender as tragédias geradas pela rivalidade entre um país chamado Brasil e um povo chamado brasileiro.

15 outubro, 2008

Tirando Coelhos da Cartola

Lí com entusiasmo O Mago, biografia do escritor Paulo Coelho escrita por Fernando Moraes. Um trabalho primoroso, não apenas como levantamento biográfico, mas como um verdadeiro romance. Fernando Moraes sem dúvida conseguiu trazer para as listas de best sellers um gênero literário que sempre esteve restrito aos estudiosos. Fiquei tão fascinado e intrigado com o que lí a ponto de imediatamente correr para a Saraiva, comprar um livro do Paulo Coelho e lançar-me pela primeira vez à sua leitura. Fernando havia me convencido de que 100 milhões de livros vendidos pelo "mago" tinham que ter um bom motivo. Escolhi O Vencedor Está Só, mais recente publicação de Paulo Coelho. Lamento, mas não encontrei nele nada que justificasse nem meio milhãozinho de livros vendidos. Cheguei então a duas conclusões para isso tudo. A primeira é que a biografia de Paulo Coelho é mais uma das suas bem sucedidas estratégias de marketing, aliás muito bem descritas no livro de Fernando. Capaz como foi, de me fazer correr para comprar pela primeira vez um livro do escritor global, imagino que o mesmo tenha acontecido com dezenas de milhares de leitores de O Mago. A segunda conclusão é que o sucesso de Paulo Coelho (e isto é inquestionável) deve-se muito mais à uma carência de filósofos contemporâneos que ao pensamento do escritor. Creio ter sido Jorge Luiz Borges, falecido no fim do século passado, o último escritor a quem podemos classificar também de filósofo. Por trás de sua requintada prosa ou poesia, escondem-se respostas às milenares questões que nos angustiam ou -melhor ainda- novas visões destas mesmas questões. Depois de Borges, não tenho conhecimento de qualquer outro escritor contemporâneo que com um fundamento filosófico em seus livros, tenha alcançado popularidade. Aliás, nem o próprio Borges não era assim tão popular. Paulo Coelho repete tudo que já lemos por aí, desde O Pequeno Príncipe até A Profecia Celestina. Acontece que muita gente não leu nem um nem outro e descobre tudo isso de forma condensada, superficial e com uma forte influência das publicações de auto-ajuda (como convêm a este tempo em que a leitura é algo fugaz) nos livros extremamente bem trabalhados mercadologicamente de Paulo Coelho. Claro que isso não deve condená-lo à fogueira em praça pública, como gostariam 100% dos críticos literários nacionais. Pelo contrário. Ele está de certa forma atendendo a carência de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo e que ainda procuram respostas. Este é o lado bom do fenômeno. Saber que nem todos estão contentes com os romances do cotidiano, as novelas da televisão, os blogs da vida ou os websites reflexivos. Querem mais. E se tudo que eles encontram no momento é Paulo Coelho, que seja. O "mago" pode não cortar tão fundo quanto Kant, Santo Agostinho ou o próprio Borges, mas arranha quem está querendo saber o que existe por baixo da pele. Isso é bom. Provavelmente não comprarei um segundo livro de Paulo Coelho. Mas Fernando Moraes, pela primeira vez, me fez entender que ele é necessário.

Em política o coração também vota.

Acabo de participar da campanha eleitoral de um candidato a prefeito numa capital do nordeste brasileiro. No começo da campanha o candidato tinha em torno dos 6% das intenções de voto e era desconhecido ou pouco conhecido por cerca de 60% do eleitorado, o que lhe dava uma larga estrada pela frente para crescer. Ao final da campanha, o candidato -deputado federal- alcançou a marca dos 22% dos votos válidos, colocando-se em 2º lugar na votação. O que não adiantou nada, porque o atual prefeito, candidato à reeleição, independente de ter todo o poder das máquinas municipal, estadual e federal nas mãos, levou no 1º turno. Raspando, com 51,2% dos votos válidos, mas levou. Não quero aborrecer ninguém com análises eleitorais ou políticas. Este texto é apenas para registrar um fato decisivo da campanha. O candidato vencedor, desde o início da campanha vinha sendo bombardeado pelos outros quatro candidatos, inclusive aquele para quem eu estava trabalhando. Mas, os mísseis lançados contra ele não eram de precisão cirúrgica como aqueles assim definidos quando destruíram alvos estratégicos em Bagdá. Com trajetória meio incerta, eles atingiam ora a administração realizada, ora o próprio candidato. Uma coisa é você criticar uma realidade, outra é você criticar uma pessoa. A administração municipal realizada pelo candidato à reeleição não era um absurdo como tantas que temos por aí mas tinha lá suas falhas, principalmente num setor vital para a opinião pública: a saúde. Entretanto o cidadão que ocupava -e continuará ocupando mais 4 anos- a cadeira do prefeito, é um cara bacana. Simples, sem qualquer vestígio de arrogância, simpático, festeiro. Daqueles que sobem no palco de um evento público e tocam sanfona para o povo cantar. Pois bem. Torpedeado por todos os lados, sua intenção de votos que beirava os 57% no início da campanha, despencou para 47% perto do final, com registro de tendência a continuar caindo. Isso significava que havendo um segundo turno, sua situação se complicaria. Acontece que os torpedos adversários ora explodiam mostrando que a situação municipal era calamitosa, ora detonavam dizendo que o prefeito era um sujeito desprezível, sem vontade própria, preguiçoso e enganador. Até que chegou o momento do debate final, transmitido pela Rede Globo, no último dia de propaganda eleitoral. Espertamente, o prefeito candidato apresentou-se como vítima de ódios pessoais e não de críticas fundamentadas. A cada chicotada que levava no ar, retrucava: porque vocês não apresentam soluções para os problemas da cidade em lugar de ficarem me espancando? O resultado é que ele saiu do estúdio da Globo de volta para seus 52% de votos que o elegeram no próprio dia 6 de outubro. O povo ficou do lado dele. Ninguém se sente feliz -exceto os sádicos, mas aí é com Freud- vendo alguém ser massacrado públicamente. O que estava em jogo não era a pessoa humana, mas sim a capacidade de administrar uma cidade. Isso poderia ser demonstrado apenas com a apresentação da realidade vivida pelos cidadãos, especialmente os mais carentes. Era suficiente. Quando o indivíduo em sí passou a ser julgado, o eleitor tomou as dores. Mesmo sabendo que mais coisas poderiam ter sido feitas em seu benefício, não aceitou que atacassem a pessoa do prefeito. Sentimentalismo barato? Aos olhos de quem perdeu, sim. Aos olhos da população, não. O povo podia até não achar sua gestão lá essas coisas, mas gosta dele. Olhando de fora, vemos aí mais uma manifestação do consciente coletivo. Parecido com o fato de que ninguém nunca acha que Daiane dos Santos errou na ginástica ou todo mundo acha que Rubinho sempre errou, até mesmo fora do carro. Levar uma pessoa ao pódio ou tirar alguém de lá, não se resume à técnicas de comunicação e marketing. É indispensável sensibilidade. Porque, por mais sofrida que seja a nossa gente, ela ainda é sensível e capaz de simpatizar ou antipatizar à primeira vista e tomar posições puramente emocionais. Exatamente como eu ou como você. O eleitorado não é uma massa disforme, que segue os caminhos da lógica de mercado e suas ferramentas poderosas. É gente como a gente, capaz de desmontar a mais qualificada previsão de comportamento e seguir o coração. Ainda bem que não perdemos de todo a nossa capacidade de nos emocionarmos. Fica a lição, tanto para quem ganhou quanto -principalmente- para quem perdeu.