14 fevereiro, 2009

Fragmentos

Pedaços de pensamento, aparentemente sem conexão alguma, frutos de um certo ócio da temporada, quando os neurônios acordam mais tarde, se movimentam lentos sob os 40º centígrados do ambiente e perguntam meio sonolentos se já acabou o horário de verão e começou a temporada da Fórmula 1. Que nada. Ainda falta o Carnaval para o Brasil acordar e quem sabe, ler alguma coisa.
O SILÊNCIO

Há pouco arrumava uns recortes de jornais e alguns cadernos de cultura da Folha, que insisto em guardar e encontrei uma matéria especial sobre Jorge Luis Borges, um escritor argentino já falecido (morreu aos 93 de idade e cego desde os 50) e que me abriu as portas do pensamento livre. Leio e guardo tudo dele ou sobre ele, pois “El Brujo” sem dúvida foi o escritor mais importante do século XX. Nesta matéria está reproduzida uma carta escrita por Borges, onde em certo trecho ele diz: “...uma moça a quem fiz a corte em Palma e da qual cada silencio era uma obra de arte”. Acho que o conceito de silencio concebido, trabalhado como uma obra de arte, é uma verdadeira descoberta borgiana e de uma profundidade absoluta. Somente momentos especiais merecem obras de arte a respeito, sejam elas músicas, poemas, pinturas ou silêncios.
A VÍRGULA

Existe um poema de Lord Byron, criado por volta de 1800, chamado Não Mais Passearemos, onde em certo momento ele escreve: “chega um instante em que o coração precisa tomar fôlego e o amor, descansar.” Embora todo o poema seja admirável, o que mais me fascina nele, é a vírgula. Acho que nunca, em tudo que já li, encontrei uma vírgula tão perfeita, capaz de dar ao verbo a respiração exata e concreta, para seu significado de repouso.
OS ASTROS

Leio num horóscopo para o meu signo, o seguinte: “Seu momento é de definições, não só em relação ao amor, mas a tudo o que você busca para a sua vida. Reflita bastante antes de agir.” Não acho, nem poderia achar, nada sobre a vontade dos astros. Eles são soberanos em suas órbitas. Sei apenas que eles definem um pouco do que somos e podem sinalizar algumas coisas ao longo da vida. Quanto a refletir bastante antes de agir, me parece um conselho aplicável a todos os signos especialmente àqueles que regem as vidas dos que mandam neste país.
A MÚSICA
Gosto de ir buscar na música, palavras que parecem retratar fatias da vida, (em inglês é mais bonito: slices of life) como se a arte insistisse em imitá-la, mesmo sabendo que isto não tem serventia, como tem a porta da rua para o indesejado e para a filosofia popular. Na noite deserta desta casa ouço alguém que ao longe escuta Maria Bethânia dizendo ser “a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma, a sombra da voz, você não me pega, você nem chega a me ver. O cheiro dos livros desesperados não sou eu; seu olho me olha, mas não me pode alcançar”. Mesmo porque quase ninguém rezou a novena de Dona Canô, talvez não tenha sequer existido o mendigo Joãozinho Beija Flor, mas suas pegadas estão em todas as ruas enlameadas da vida.
O SONHO

O tempo da gente já se consumiu? Os barcos na enseada se alinham em paralelas onduladas, apontam um lugar qualquer no horizonte, por onde passou silencioso numa noite qualquer um vapor barato ou um luxuoso transatlântico. O lusitano comandante tinha razão. Dali pra frente só podia piorar para que todos continuássemos a flutuar. Segundo ele, "tudo que flutua balança e se deixou de balançar é porque já não flutua mais". O amor é assim um pouco oceânico e pode deixar na gente aquela estranha sensação de ter ido a Goree só porque pensamos em comprar a passagem e nos lançar ao mar. Daí, a cada vez que vemos uma foto da ilha ou do amor ficamos em dúvida. Estive lá ou não estive?
AS PALAVRAS

Antigamente, quando os astronautas iam até a Lua, havia um instante muito tenso na viagem. Era o momento em que eles se viam obrigados a fazer uma órbita em torno dela, para perder velocidade e poder descer até o solo. Durante esta órbita, um momento crítico do vôo, eles ficavam por cerca de seis minutos por trás da Lua, sobrevoando aquela face que nos é oculta e sem qualquer possibilidade de comunicação com a Terra. Durante aqueles seis absolutamente silenciosos minutos, se algo de errado acontecesse, eles somente poderiam abortar a missão e voltar para casa abatidos (como na música de Vanzollini) ou se espatifarem no terreno misterioso e intocado, feito um pacote bêbado (como na música de Chico Buarque). Por alguma razão me sinto assim escrevendo agora, como se estivesse no lado escuro da Lua, de onde minhas palavras não chegam a lugar nenhum.
O CINEMA

Existem algumas cenas de cinema, que permanecem por muito tempo em nossas memórias. Guardo comigo a visão de Dusty Hofmann mancando pelas madrugadas de Manhattan em Midnight Cowboy; do seminarista ajudante de Sean Connery sendo seduzido por uma aldeã, sobre sacos de batatas no mosteiro em O Nome da Rosa; de Max Von Sidow encharcado de suor ao sonhar navegando num rio de cadáveres em A Hora do Lobo, de Bergmann. Uma cena entretanto me marca mais profundamente. Não se trata de nenhum grande filme, sequer é uma cena surpreendente, porém por alguma razão, entre outras ela se destaca na minha memória emocional. É em Viver Por Viver, quando Ives Montand, resolve sair de uma reclusão voluntária num chalé nas montanhas nevadas de Chamonix, após uma paixão impossível. Ele caminha até o carro parado do lado de fora e coberto pela neve. Antes de entrar no carro ele se debruça e com o braço retira a neve acumulada sobre o pára-brisa. Através do vidro, dentro do carro, ele vê sentada a mulher que imaginava nunca mais rever e jamais poder ter ao seu lado. Cresce a música, sobem os créditos, acaba o filme.
Fora do cinema, a realidade tenta nos ensinar que não existem paixões impossíveis por não existirem mais paixões. Que homens e mulheres hoje se relacionam. Tem um caso. Ou ficam. Será ? Não acredito. Creio não haver mais com tanta freqüência a “paixão impossível”, porque a sociedade se tornou mais complacente, mais compreensiva, talvez até cansada de ver romeus e julietas se multiplicarem. Não existem mais tanta impossibilidade para o amor quanto existia antes. Casamentos se desfazem, distâncias são vencidas, enormes diferenças de idade ignoradas, barreiras sociais e religiosas caem por terra, culturas distintas são assimiladas, tudo em nome do amor. Tudo isso praticamente eliminou a impossibilidade, não a paixão. Hoje ela apenas não maltrata tanto quanto antes. O que impede o amor agora entre duas pessoas, é apenas a misteriosa energia que emana de cada uma delas e as fazem vibrar em sintonias semelhantes ou diferentes, mantendo-as mais ou menos afastadas. Ou mais ou menos próximas. Mas, esta é também a mesma energia que as une de forma inapelável, às vezes subitamente, às vezes lentamente, mas sempre irresistível. O mesmo cinema nos mostra isso.
Como Marcelo Mastroianni e Shirley Maclaine em Paixão de Outono, que esperaram por 40 anos ela ficar viúva, para no mesmo dia do funeral confessarem um amor latente. Ou Clint Eastwood e Maryl Strep, em As Pontes de Madison, que em uma semana amaram-se para toda a vida. Ou Jeremy Iron e Juliette Binoche em Perdas e Danos, que desistiram de lutar contra a inexplicável energia. Talvez a vida real não tenha o mesmo charme que a das telas, mas uma imita a outra e os finais felizes nem sempre parecem ser assim para todos. Mas são, para quem percebe que o amor é bem mais forte que a lógica. Não importa quem acaba com quem, se serão felizes para sempre ou se seguirão caminhos diversos depois do amor. Ou do filme. O que importa é que de uma forma ou de outra, ele fez a história. The end.
O AMOR
O enigma de Coleridge jamais saiu do meu painel luminoso, piscando cadenciado na noite infinita: “e se você dormisse, e se você sonhasse, e se no sonho você fosse ao paraíso e colhesse uma rosa, e se ao acordar a rosa estivesse em suas mãos; e então?” Meu guia e mapa, ele me orienta em direção a esta rosa misteriosa, a este fragmento de paraíso que podemos conquistar sem sair do lugar, apenas com o coração aberto ao amor. E então? A pergunta ilumina a espaçonave, atravessa suas blindadas escotilhas e se lança no espaço qual cometa vermelho, meio botão de rosa, meio coração ferido, espalhando às vezes pétalas, às vezes gotas de sangue, no universo sem limites.
AS CONEXÕES

Aprendi com as Profecias Celestinas, que não existem coincidências, que nada acontece por casualidade. Acredito nesta tese e estou sempre atento a tudo que possa parecer acidental em minha vida. Acho que o silencio, a vírgula, os astros, a música, o sonho, as palavras, o cinema, o amor, juntos, dizem alguma coisa. Claro que tudo é muito vago e misterioso. Sou quase um desconhecido para mim mesmo e sei que nada no mundo pode neste instante, fazer com que qualquer coisa tenha sentido, possibilidade e objetivo. Mas sei também que somos capazes de criar apenas os desencontros. Os encontros, estes só precisam do tempo, porque são inevitáveis. Como o silencio, a virgula, a música, os astros etc. etc. etc.