02 junho, 2009

O Anjo Exterminador e o Anjo do Varandá

Quando eu tinha por volta de 20 anos-e isso já vai longe no tempo- acontecia todas as 2ªs feiras, à meia-noite, uma sessão de cinema de arte no Cine Popular que ficava atrás do Cine Liceu, tudo alí em torno do Liceu de Artes e Ofícios, alguns quarteirões ao lado da Praça da Sé. Naquele tempo podia-se ir a um cinema naquela área à meia-noite, sair da sessão às 2 da manhã e ir pra casa a pé. A madrugada de Salvador não oferecia qualquer perigo; ao contrário, era repleta de boas surpresas ou no mínimo de uma tranqüilidade deliciosa. Eu costumava freqüentar essas sessões religiosamente, em companhia de alguns amigos que também eram fascinados por cinema. Vicente Sarno, Herbert Clavijo, Joubert Moraes, Epaminondas Berbet, Afonso Ligouri, vez por outra Gei Espinheira e outros que já se foram ou eu não lembro mais.
Depois do filme, caminhávamos em silêncio, arrumando as idéias na cabeça, até a ladeira do Pau da Bandeira, que liga a Rua Chile à ladeira da Montanha. Lá estava sempre aberto o Varandá, reduto da boemia, da música, dos poetas, dos cantores, da jovem intelectualidade local sempre notívaga e evidentemente de moças dispostas a fazer a alegria de qualquer um dos freqüentadores alí mesmo ou numa pensão discreta da Rua Chile, em troca de algumas doses, de um jantar ou de uma ajuda para comprar um remédio para tia doente. Mas quando eu e minha turma chegávamos ao Varandá, tudo isso era apenas cenário. O que acontecia a partir dali era uma intensa discussão a respeito do que acabáramos de assistir, do significados de cada cena e o que poderíamos extrair como lição de vida daqueles 90 e poucos minutos de cinema.

A sessão de arte do Popular exibia filmes de Ingmar Bergmann, Antonioni, Buñuel, Piér Paul Pasolini, Truffaut e outros cineastas herméticos, simbolistas e devastadores de conceitos morais, sociais, sexuais, religiosos, patrióticos e outros menos entranhados em nossos raciocínios.

Certa noite/madrugada entretanto, ao chegarmos ao Varandá, permanecemos mudos, observando vagamente o que acontecia em volta sem que a inevitável discussão sobre o filme se iniciasse. Um dos companheiros anunciou que não estava a fim de pirar e que iria “dar uma” antes de qualquer coisa, saindo imediatamente com a primeira das moças com quem cruzou o olhar. Havíamos acabado de assistir O Anjo Exterminador, de Luiz Buñuel, um dos filmes mais intrigantes já realizados pelo cinema.

Um roteiro simples: durante um jantar na mansão de um dos burgueses de uma pequena cidade, toda a elite local diverte-se, ri e exibe suas qualidades com a desenvoltura natural dos superiores socialmente. Tudo vai bem até que se percebe ser muito tarde, o jantar haver acabado há muito tempo e que ninguém vai embora. Na verdade ninguém consegue ir embora, como se uma força invisível impedisse a saída de qualquer um da sala de jantar.

Sem explicações e sem conseguir sair da sala, eles acabam dormindo por ali mesmo –embora a casa seja enorme- amontoados em sofás e pelo chão. No dia seguinte, o mistério continua. Ninguém consegue sair da sala. Com o passar dos dias sem que se encontre uma –literalmente- saída, as personalidades desmoronam e os burgueses se transformam em selvagens mendigos, moradores de rua, disputando a tapas restos de comida, escavando paredes em busca de um cano d’água e esfarrapados, revelam suas personalidades sórdidas e cruéis.

Um dia, sem qualquer sentido ou explicação, um bando de ovelhas surge do nada, atravessa a sala e a força estranha desaparece de repente. Todos conseguem sair da sala e da casa. Recompõem-se reassumindo suas atitudes de elite da comunidade. Em seguida mandam celebrar uma missa em agradecimento ao Senhor por terem se livrado daquele terrível pesadelo. Além do grupo, são convidados aqueles que geralmente orbitam em torno da classe dominante. Finda a missa, eles percebem que não conseguem sair da igreja. Cena final: externa da igreja à distância, portas abertas sem que ninguém consiga sair e pela frente dela passa o rebanho de ovelhas, sem entrar. O rebanho sai desaparecendo pela lateral da tela. The end.

Discutir o que? A degradação da classe dominante diante de uma ameaça, real ou imaginária? Todos sabemos que é assim. Debater a natureza ou simbologia da força que impediu a todos de saírem da sala até que descessem ao fundo do poço moral? Questionar o significado das ovelhas naquele cenário e qual a sua função? Considerar uma intervenção divina? Buñuel era ateu até a unha do pé. E quando –ou se- finalmente chegássemos a alguma percepção em comum, transcenderíamos a discussão para a ampliação do mistério, acontecido dentro da igreja? Não. Naquela noite isso não seria possível. Talvez a certeza de não chegarmos a conclusão alguma, talvez o medo de nunca mais conseguirmos sair do Varandá, talvez tudo isso junto e somado ao espanto diante do filme de Buñuel fez com que naquela noite não houvesse discussão alguma sobre O Anjo Exterminador.

Vicente logo achou uma morena que sorria o tempo todo para ele e sumiu junto com ela. Herbert e mais alguém alegaram sono profundo acompanhado de dor de cabeça e foram embora pra casa. Eu fiquei mais um pouco bebericando uma cerveja até que se aproximou de mim uma mocinha muita alva, de grandes olhos escuros, corpo miúdo e quase magro, cabelos de cor indefinida. Usava um vestido branco de tecido transparente, revelando uma mínima calcinha também branca e nada mais além das sombras e texturas do corpo. Sob a luz azulada do Varandá parecia volátil, uma entidade, um anjo saído da adega local. Sentou-se ao meu lado perguntando se eu queria mesmo ficar sozinho. Respondi que não e ela me disse que conhecia um lugar ali pertinho, legal pra ver o sol nascer.

Paguei a cerveja e fomos para um pequeno quarto com vista para a Baía de Todos os Santos. Na manhã seguinte eu me perguntava se viver não era mais simples que entender a vida.