03 novembro, 2009

Tirando o atraso.

DE ENCONTRO COM O COMPROMISSO DE ESCREVER.
Depois de muito tempo sem atualizar este blog (ainda bem que ele tem poucos leitores) voltar a fazê-lo me leva irremediavelmente a lembrar do filme De Encontro Com O Amor. Embora o título brasileiro mude o foco do filme, ele na realidade é sobre um escritor que desistiu de escrever após a morte de sua mulher.
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Harvey Keitel, mais uma vez brilhante, faz o escritor. Este ao se ver viúvo, abandona New York e se refugia numa apaixonante aldeia na região de Siena, na Itália. Vivendo de direitos autorais, uma colheita anual de uvas e da produção de leite de algumas poucas vacas, ele se dedica a beber, jogar com os amigos mais íntimos (um padre impagável aí incluso), beber novamente, fumar charutos, recordar continuamente a esposa morta e botar para correr jornalistas e editores que não desistem de procurá-lo. Uma de suas filhas, Isabella, cuida deste problema ambulante com suavidade e vigor ao mesmo tempo. Claire Forlani, a mais bela mulher que tenho visto nas telas há algum tempo, interpreta este papel.
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É evidente que o mocinho da história -mais um editor que vai até o refugio do escritor- além de conseguir fazer com que ele volte a escrever, se apaixona por ela. Não me apaixonei por ninguém e ninguém me convenceu a voltar a escrever aqui neste espaço, mas minha mente fez esta associação com o filme. De Encontro... não chega a ser um filme genial. Mas a paisagem de Siena, a atuação de Keitel, a beleza de Claire e o texto, valem os 110 minutos frente à tela, sem hesitação. Especialmente à noite, que na definição de Weldon Parish, nome do personagem escritor, “a tudo encobre e domina com o seu silêncio”. Assista.
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WOODY ALLEN TENTA SE ATUALIZAR. JÁ CHEGOU À DÉCADA DE 80 DO SÉCULO PASSADO.
Gosto de Woody Allen. Acho Manhattan uma obra prima do cinema. Gosto da forma como ele arranca magistrais interpretações de atores sobre os quais nunca tínhamos ouvido falar. Gosto da forma como ele de certa forma minimiza as grandes neuroses urbanas, transformando-as em objetos de consumo dos seus personagens. Gosto da criteriosa escolha dos títulos de seus filmes. A gente se encanta com Todos Dizem Eu Te Amo antes mesmo de ver o filme.
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Woody é inteligente e percebeu que a geração que consegue mergulhar fundo na sua ironia, nas suas citações e nas suas entrelinhas, está morrendo sem reposição. Resolveu então “modernizar” um pouco seus filmes. Vicky, Cristina, Barcelona é para mim o exemplo mais emblemático desta tentativa. Um filme moderninho. Neuroses mais compreensíveis por parte dos neuróticos contemporâneos. Trilha sonora passando muito longe de Gershwin ou Cole. E principalmente atores habituados a gerar bilheteria, como Penélope Cruz ou Javier Bardem.
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É um bom filme, mas o fato dele existir lembra muito -na real- Benjamin Button. Aos 73 anos Woody resolve parecer que tem 40. Com esse olhar ele nos mostra a visão de duas norte americanas passando férias em Barcelona e seu envolvimento com um artista local. Não tem falhas, como não poderia ter e nunca teve em nenhuma dos seus filmes. Mas não tem a griffe Woody Allen. Não seria atribuído a ele se fosse exibido a pessoas que não sabem disso.
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Nesse ritmo ele acabará produzindo um remake de Chapeuzinho Vermelho, ambientado em Caracas e tendo como atriz principal Verônica Belmont. Nem precisa pensar muito pra saber quem interpretará o Lobo Mau. Será que vale a pena buscar a atualização de um estilo –que não é muito flexível- para não perder público com o passar do tempo? Woody acha que sim. A crítica mundial respeita o que ele já fez e reconhece os méritos de Vicky, Cristina, Barcelona. Mas registra aquela sensação de perplexidade. Como se de repente Tio Patinhas virasse um bem sucedido investidor da Bolsa de New York. Pra não sair do cenário favorito de Allen.
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PREFIRO BEIRUTE. DE ROSBIFE COM BASTANTE MAIONESE.
Mais uma vez bato de frente com o cinema nacional. Não tem jeito. Postei aqui um comentário sobre o quanto me deliciei assistindo Bela Noite Para Voar e logo depois, achei que deveria dar mais oportunidades às produções brasileiras. Podia ter me contido. Mas não, resolvi assistir Budapeste, inspirado ou baseado, sei lá, no livro do mesmo nome escrito por aquele rapaz que era um compositor insuperável chamado Chico Buarque e resolveu transformar-se no escritor meia-boca Chico Buarque. O filme segue a mesma batida do livro. É insuportável. A melhor coisa é –pra quem não conhece- um dito popular já senil, que diz: o húngaro é a única língua que o Demônio respeita. Acaba por aí.
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BASTARDOS INGLÓRIOS
Já perdi a conta dos filmes que assisti sobre Hitler, nazismo, holocausto etc. Os que mais me marcaram foram aqueles que mergulharam na alma e nos sentimentos das pessoas, indo remexer no lado humano dos envolvidos.
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Entre estes, A Lista de Schindler é um destaque, assim como O Menino de Pijama Listrado e A Espiã. Podem me apedrejar, mas não gosto de A Vida É Bela. Acho que ele ultrapassou a tênue linha que separa a tragédia da comédia e caiu para o lado errado. Agora surge Brad Pitt com cara de mau comandando um grupo de judeus americanos a escalpar nazistas onde quer que eles se encontrem.
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O filme de Tarantino é uma viagem grotesca entre a fantasia e a realidade, com tintas exageradas em ambos os quadros. Quem gosta de Tarantino –e ele tem esse poder de sedução- adora tudo o que ele faz. Quem, como eu, mantêm um certo distanciamento crítico, não consegue gostar ou não gostar do filme. A gente sabe que está diante de algo competente, estruturado, pensado, mesmo que a estética de Tarantino seja o caos que costuma ser. Mas não conseguimos captar a intenção principal de tudo aquilo.
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Reverter a história? Ridicularizar os nazistas? Glorificar os marines? Revelar algo desconhecido que aconteceu na 2ª Guerra? Não consegui saber. Brad Pitt é um ator competente. Interpretar a morte como ele fez em Encontro Marcado é suficiente para sabermos que estamos vendo um ator maiúsculo. Em Bastardos ele não encontra espaço para ser competente. A direção de Tarantino o faz oscilar entre o grotesco, o patético, o cômico e o cruel, sem convencer em nenhum dos papéis. Enfim, resta o consolo de saber que depois de ter explodido toda a cúpula do III Reich –Adolf à frente- dentro de um pequeno cinema, Tarantino não mais voltará ao assunto.

14 agosto, 2009

Chaplin e Carlitos

A propaganda persegue há décadas a capacidade do cinema de criar personagens ou personalidades definitivas. Embora muito mais presente vida das pessoas que o cinema, em função da frequência e da diversidade da mídia, a propaganda entretanto não consegue “perpetuar” suas criações, perdendo por várias cabeças para os longas.
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Quem consegue lembrar o nome do personagem que durante muito tempo foi garoto-propaganda do guaraná Antarctica ? Somente quem é do ramo -e ainda assim uma minoria- responde em menos de 30 segundos: Teobaldo.
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Divine Brown, que nem apareceu nas telas e o mais próximo que chegou do cinema foi ao pinto de Hugh Grant, é um nome rapidamente identificado e lembrado quando o assunto é Hollywood.
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Para falar a linguagem da propaganda, seus personagens são perecíveis. Enquanto Scarlett O’Hara atravessa décadas na mente de multidões, nem o sotaque e os saiotes escocêses fazem o consumidor lembrar o nome daquele simpático senhor que falava sobre um whisky, qual era mesmo, Passaport ou Ballantinnes ?
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A sequência de exemplos é interminável, desde Mickey até Rambo e Rocky Balboa sem esquecer os óbvios James Bond, Inspetor Clouseau, Dom Vito e toda a Famiglia Corleone; os clássicos Gordo e o Magro, o vagabundo Carlitos, o inesquecível Ricky e seu “play it again, Sam.” E outros, muitos e muitos outros. Nem falar nos seriados, onde a coisa fica ilimitada a partir de Tarzan, Zorro, Sargento Garcia, passando por todos os cowboys até chegar a Fred Flintstone e Barney Rubble e depois Dino da Silva Sauro, já na animação.
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E os heróis da propaganda, onde estão ? Aquele senhor gordo, de barba, que fala do Bamerindus, tem nome ? Até o recordista do Guiness e já idoso apresentador do Bom Bril é um anônimo para o grande público. Em pouco tempo o herói dos comerciais vai para a vala comum dos não identificados.
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Porque isso acontece? Simplesmente porque o herói do cinema interpreta uma personalidade, com a qual nos identificamos ou rejeitamos profundamente. Já o herói da propaganda interpreta um sabão em pó, um sorvete, um carro ou um supermercado. E dificilmente alguém dá a isso mais importância além de verificar se o que está sendo anunciado é verdadeiro e compensador. Por mais simpatia que se tenha por quem está anunciando. Checada a informação e realizada a compra ou não, acabou o comercial e o personagem vai junto. The end.
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Agora, jogando um pouco de sal na ferida: será que o cinema ainda tem esta capacidade de criar personagens imortais ? Quem lembra do nome de algum personagem dos incontáveis filmes de Spielberg, além do E.T. e do soldado Ryan? O olhem que Spielberg é um diretor que foi beber nas fontes murmurantes das agências de propaganda da Madison Ave. Alguém lembra o nome de um personagem de um dos filmes de Woody Allen, que herdou o espólio da ingenuidade de Chaplin, mas não herdou o lirismo e muito menos Carlitos ?
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Para ser mais amplo, quem lembra de algum personagem de algum filme nos últimos 5 anos? Ou, pra radicalizar logo, alguém lembra três dos filmes que concorreram ao Oscar deste ano ?
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Será que o cinema está ficando tão comercial quanto a propaganda ? Claro que sim. Foi a única forma que ele encontrou de enfrentar a televisão e não fechar as portas de todas as salas em todos os países. Mas, longe de significar uma tragédia, isto tem seu lado positivo.
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A renovação do cinema permitiu a abordagem de muitos mais temas, ampliou o leque aventura/drama/terror/comédia infinitamente, permitiu grandes espetáculos e trouxe de volta para a telona um público que ficou muito tempo na poltrona da sala de jantar. O DVD –pirata ou não- tornou-se um forte aliado do cinema e as pessoas assistem cada vez mais filmes.
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Foram-se os anéis mas ficaram os dedos. Se a comunicação se transformou completamente nas duas últimas décadas, tornando-se uma ação tão transitória quanto os fatos, paciência. O mundo está assim mesmo. Você vai guardar este artigo na memória quando terminar de ler? Claro que não.
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Resta aos irmãos Lumiére o orgulho de estarem contemporâneos da Internet. E a nós, a felicidade de conviver com um século das mais diversas emoções.

05 agosto, 2009

Sem Medo de Voar

Não posso abrir este texto de outra forma senão citando Juscelino Kubitscheck, o mais simpático e respeitado ex-presidente que este país já teve. Volto atrás sim. Não tenho compromisso com o erro.
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Por diversos motivos não tenho os filmes nacionais entre as minhas preferências de cinema. Um deles é que os temas do nosso cinema ou são biográficos ou então sempre giram em torno de favelas, presídios, meninos de rua, drogas, prostituição e similares, formando um vasto dejá vu. Isso porque o Brasil não tem escritor de roteiros para cinema. Pega-se uma obra de alguém, faz-se uma adaptação e pronto: virou filme. Não existe o escritor profissional para cinema. Pegar um livro e transformar em filme não é fácil e o resultado é quase sempre o mesmo comentário: gostei mais do livro.
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Pegar uma câmera e sair rodando pelo Morro do Macaco Molhado é fácil. Sempre a lente vai encontrar alguma coisa chocante para mostrar. Depois se edita, enxertam-se algumas cenas gravadas em locação interna e temos mais um filme brasileiro “com grandes possibilidades de indicação para o Oscar”. Mas isso a gente já via décadas atrás pela televisão, no Comando da Madrugada e é tema para uma vasta discussão que não cabe aqui.
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Na prática o que mais me incomoda mesmo é saber que no momento em que estaria assistindo Toni Ramos no cinema, ele está na Novela das 8 fazendo uma bobagem qualquer.
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Por questões de mercado de trabalho, a televisão tomou para si todos os grandes atores e atrizes do país. Até Paulo Autran sucumbiu. É estranha a sensação de ver no cinema o mesmo ator que está de 2ª a sábado em sua casa numa novela e aos domingos, no Faustão. Acho que eu não teria a mesma satisfação de assistir Al Pacino, por exemplo, se o visse diariamente fazendo séries bobas e inverossímeis anos seguidos na televisão.
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Mas, ganhei de presente o DVD do filme Bela Noite Para Voar. Sou apaixonado por aviação e por JK e então não me restou alternativa senão assistir o filme. Além do mais, era um presente. E um belo presente. Mesmo que eu várias vezes tenha confundido Mariana Ximenes “Princesa” com Mariana Ximenes “Lara” o filme de Zelito Miranda é extremamente competente, fugindo ao lugar comum dos roteiros de filmes nacionais.
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Longe de pretender ser uma biografia de Juscelino, Bela Noite Para Voar pega um episódio isolado da vida do ex-presidente e o mostra com a mesma competência dos filmes de ação que encontramos por aí. A sabotagem do avião, a descoberta do plano em andamento e como se evitou a tragédia. Tudo isso costurado pelas linhas fortes de uma história de amor, das muitas que JK deixou escritas por este Brasil afora.
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Uma trilha competente dá o clima exato que se pretende para a aventura relatada. Em pouco mais de uma hora a personalidade cativante de JK é mostrada em todas as suas facetas. O líder, o idealista, o progressista, o religioso, o conquistador, o incansável, o popular, o pai de família, o pensador; todos estão no filme, mostrados em seqüências às vezes curtas, porém sempre muito marcantes. A figura única de JK é mostrada com uma profundidade que as melhores biografias não alcançaram, mostrando toda a sua capacidade de fazer admiradores. Como diz o personagem que faz Jânio Quadros ao próprio JK avisaram-se que Vossa Excelência é um perigoso sedutor, mas pensei que se referissem somente às mulheres.
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Deus, entre outras graças, deu-me o desconhecer o medo, diz JK a certa altura do filme. Creio que Zelito Miranda poderia dizer o mesmo. Não teve qualquer receio em fazer um filme com cara de filme, fugindo do padrão “a vida de” ou “pisando na lama” que norteia o cinema nacional, em sua maioria. Não posso dizer que Zelito me fez mudar de opinião a respeito do cinema brasileiro. Mas com certeza deu-me o prazer inesperado de assistir um belo filme.

23 julho, 2009

O Inferno São Os Outros

Devo ter assistido o filme Constantine uma dezena de vezes. Nele diversas coisas me fascinam, desde a morte anunciada pelo câncer de pulmões –sou fumante inveterado de 40 cigarros por dia, em média- até a morte resgatada e que dá origem a toda história do filme.
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O roteiro é muito criativo. Constantine esteve morto por alguns segundos, após um acidente e antes que os paramédicos o trouxessem de volta à vida. Porém, nestes breves segundos de morte ele foi parar no inferno e como por lá o tempo não existe, sua permanência no reino de Satanás corresponde a uma eternidade. Ele então pode conhecer os demônios mais influentes do grupo, os demônios comuns e aqueles que possuem por missão buscar almas que ainda habitam corpos em trânsito pelo planeta.
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Pior de tudo: Constantine ao voltar consegue reconhecer essa turma quando ela está pelas ruas da cidade. Ao mesmo tempo em que tenta negociar com as lideranças das profundezas para não ter que retornar quando morrer definitivamente, Constantine também se dedica a caçar aqueles que ficam aliciando almas por aqui.
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Outra coisa que me fascina é a beleza andrógina do anjo Gabriel, que vive aparecendo à Constantine para convencê-lo de que sua luta é inútil e que ele voltará ao fogaréu eterno, levado inclusive pelo próprio Belzebu, que virá pessoalmente buscá-lo quando chegar o momento.
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Aí eu me pergunto: será mesmo necessário morrer e ressucitar para perceber que o mundo das trevas pode ser acessado a qualquer instante aqui mesmo? Na próxima esquina pode surgir em nossa frente um representante de Satã com uma arma na mão e transformar a nossa vidinha rotineira num inferno sem hora para terminar. Um pedaço da eternidade, como viveu Constantine.
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Um exemplo mais simples: você chega do trabalho cansado, pensando em entrar em casa, tirar a roupa e recompor suas forças. Mas ao abrir a porta, você é soterrado por problemas de todas as espécies. Desde o botijão de gás que acabou e o reserva também está vazio até sua filha mais nova que ameaça o suicídio porque a mão não permitiu que ela fosse ao cinema com as amigas, passando pelo micro ondas que quebrou, a conta do cartão que chegou depois do vencimento e a imprevisível TPM de sua santa esposa.
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Sartre já dizia; o inferno, são os outros.
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Caso o nosso cotidiano fosse um filme, certamente o público seria próximo de zero, mas ele é real e tenha público ou não, sentimos na pele todos os seus efeitos. Viver é partilhar o tempo presente com todos os demônios que passeiam por aí, seja no trabalho, nas ruas, nos shoppings ou em nossa casa. É tentar identifica-los e neutraliza-los sem ter a experiência de Constantine para reconhece-los de longe.
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Aquela mulher sensual que surge de repente na sala de espera do dentista e te seduz escancaradamente. Vira um inferno. Aquele software inocente que v. baixa da internet para se proteger de ameaças digitais. Vira um inferno. Aquela oficina autorizada onde você resolve levar seu DVD player para fazer uma limpeza. Vira um inferno.
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Tudo isso enquanto Deus sorri zombeteiro nos observando de longe, da confortável e espaçosa varanda dos céus.
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Então você dá uma de Constantine: faz promessas, jura parar de fumar, acender velas para os santos do dia se as coisas melhorarem um pouco e ouve como resposta a mesma coisa que Constantine ouviu: Deus não faz negociações. Deus é Deus.
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Acho que por isso mergulho nos filmes e os vivo como se estivesse também alí na tela. É uma forma de ter certeza de que, por mais complexo que seja o inferno que nele está contido, depois de 90 e poucos minutos a gente sai dele. O que quase nunca acontece na vida real.

02 junho, 2009

O Anjo Exterminador e o Anjo do Varandá

Quando eu tinha por volta de 20 anos-e isso já vai longe no tempo- acontecia todas as 2ªs feiras, à meia-noite, uma sessão de cinema de arte no Cine Popular que ficava atrás do Cine Liceu, tudo alí em torno do Liceu de Artes e Ofícios, alguns quarteirões ao lado da Praça da Sé. Naquele tempo podia-se ir a um cinema naquela área à meia-noite, sair da sessão às 2 da manhã e ir pra casa a pé. A madrugada de Salvador não oferecia qualquer perigo; ao contrário, era repleta de boas surpresas ou no mínimo de uma tranqüilidade deliciosa. Eu costumava freqüentar essas sessões religiosamente, em companhia de alguns amigos que também eram fascinados por cinema. Vicente Sarno, Herbert Clavijo, Joubert Moraes, Epaminondas Berbet, Afonso Ligouri, vez por outra Gei Espinheira e outros que já se foram ou eu não lembro mais.
Depois do filme, caminhávamos em silêncio, arrumando as idéias na cabeça, até a ladeira do Pau da Bandeira, que liga a Rua Chile à ladeira da Montanha. Lá estava sempre aberto o Varandá, reduto da boemia, da música, dos poetas, dos cantores, da jovem intelectualidade local sempre notívaga e evidentemente de moças dispostas a fazer a alegria de qualquer um dos freqüentadores alí mesmo ou numa pensão discreta da Rua Chile, em troca de algumas doses, de um jantar ou de uma ajuda para comprar um remédio para tia doente. Mas quando eu e minha turma chegávamos ao Varandá, tudo isso era apenas cenário. O que acontecia a partir dali era uma intensa discussão a respeito do que acabáramos de assistir, do significados de cada cena e o que poderíamos extrair como lição de vida daqueles 90 e poucos minutos de cinema.

A sessão de arte do Popular exibia filmes de Ingmar Bergmann, Antonioni, Buñuel, Piér Paul Pasolini, Truffaut e outros cineastas herméticos, simbolistas e devastadores de conceitos morais, sociais, sexuais, religiosos, patrióticos e outros menos entranhados em nossos raciocínios.

Certa noite/madrugada entretanto, ao chegarmos ao Varandá, permanecemos mudos, observando vagamente o que acontecia em volta sem que a inevitável discussão sobre o filme se iniciasse. Um dos companheiros anunciou que não estava a fim de pirar e que iria “dar uma” antes de qualquer coisa, saindo imediatamente com a primeira das moças com quem cruzou o olhar. Havíamos acabado de assistir O Anjo Exterminador, de Luiz Buñuel, um dos filmes mais intrigantes já realizados pelo cinema.

Um roteiro simples: durante um jantar na mansão de um dos burgueses de uma pequena cidade, toda a elite local diverte-se, ri e exibe suas qualidades com a desenvoltura natural dos superiores socialmente. Tudo vai bem até que se percebe ser muito tarde, o jantar haver acabado há muito tempo e que ninguém vai embora. Na verdade ninguém consegue ir embora, como se uma força invisível impedisse a saída de qualquer um da sala de jantar.

Sem explicações e sem conseguir sair da sala, eles acabam dormindo por ali mesmo –embora a casa seja enorme- amontoados em sofás e pelo chão. No dia seguinte, o mistério continua. Ninguém consegue sair da sala. Com o passar dos dias sem que se encontre uma –literalmente- saída, as personalidades desmoronam e os burgueses se transformam em selvagens mendigos, moradores de rua, disputando a tapas restos de comida, escavando paredes em busca de um cano d’água e esfarrapados, revelam suas personalidades sórdidas e cruéis.

Um dia, sem qualquer sentido ou explicação, um bando de ovelhas surge do nada, atravessa a sala e a força estranha desaparece de repente. Todos conseguem sair da sala e da casa. Recompõem-se reassumindo suas atitudes de elite da comunidade. Em seguida mandam celebrar uma missa em agradecimento ao Senhor por terem se livrado daquele terrível pesadelo. Além do grupo, são convidados aqueles que geralmente orbitam em torno da classe dominante. Finda a missa, eles percebem que não conseguem sair da igreja. Cena final: externa da igreja à distância, portas abertas sem que ninguém consiga sair e pela frente dela passa o rebanho de ovelhas, sem entrar. O rebanho sai desaparecendo pela lateral da tela. The end.

Discutir o que? A degradação da classe dominante diante de uma ameaça, real ou imaginária? Todos sabemos que é assim. Debater a natureza ou simbologia da força que impediu a todos de saírem da sala até que descessem ao fundo do poço moral? Questionar o significado das ovelhas naquele cenário e qual a sua função? Considerar uma intervenção divina? Buñuel era ateu até a unha do pé. E quando –ou se- finalmente chegássemos a alguma percepção em comum, transcenderíamos a discussão para a ampliação do mistério, acontecido dentro da igreja? Não. Naquela noite isso não seria possível. Talvez a certeza de não chegarmos a conclusão alguma, talvez o medo de nunca mais conseguirmos sair do Varandá, talvez tudo isso junto e somado ao espanto diante do filme de Buñuel fez com que naquela noite não houvesse discussão alguma sobre O Anjo Exterminador.

Vicente logo achou uma morena que sorria o tempo todo para ele e sumiu junto com ela. Herbert e mais alguém alegaram sono profundo acompanhado de dor de cabeça e foram embora pra casa. Eu fiquei mais um pouco bebericando uma cerveja até que se aproximou de mim uma mocinha muita alva, de grandes olhos escuros, corpo miúdo e quase magro, cabelos de cor indefinida. Usava um vestido branco de tecido transparente, revelando uma mínima calcinha também branca e nada mais além das sombras e texturas do corpo. Sob a luz azulada do Varandá parecia volátil, uma entidade, um anjo saído da adega local. Sentou-se ao meu lado perguntando se eu queria mesmo ficar sozinho. Respondi que não e ela me disse que conhecia um lugar ali pertinho, legal pra ver o sol nascer.

Paguei a cerveja e fomos para um pequeno quarto com vista para a Baía de Todos os Santos. Na manhã seguinte eu me perguntava se viver não era mais simples que entender a vida.

09 maio, 2009

The Real Life Presents:

Cena 1: homem diz à mulher que vai se apaixonar por ela. Cena 2: mulher diz ao homem que não existe possibilidade para ambos, pois ela ama outro alguém acima de tudo e não pretende sequer vê-lo em outra circunstância. Cena 3: homem aceita a situação, mas sente a atração crescer em seu coração, não se afastanem evita demonstrar que a quer. Cena 4: mulher mantém a situação inalterada, mas ali surgiu uma ponte e o tempo cria entreeles um entendimento e um carinho crescentes. Cena 5: (ainda sendo escrita.)

Os acontecimentos aqui narrados são imaginários e qualquer semelhança com coincidências terá sido fatos reais.

Existem algumas cenas de cinema, que permanecem por muito tempo em nossas memórias. Guardo comigo a visão de Dusty Hofmann mancando pela madrugada de Manhattan em Midnight Cowboy; do seminarista ajudante de Sean Connery sendo seduzido por uma aldeã, sobre sacos de batatas no mosteiro em O Nome da Rosa; de Max Von Sidow encharcado de suor ao sonhar navegando num rio de cadáveres em A Hora do Lobo, de Bergmann.
Uma cena entretanto me marca mais profundamente. Não se trata de nenhum grande filme, sequer é uma cena surpreendente, porém por alguma razão, entre outras ela se destaca na minha memória emocional. É em Viver Por Viver, quando Ives Montand, resolve sair de uma reclusão voluntária num chalé nas montanhas nevadas de Chamonix, após uma paixão impossível. Ele caminha até o carro parado do lado de fora e coberto pela neve. Antes de entrar no carro ele se debruça e com o braço retira a neve acumulada sobre o pára-brisa. Através do vidro, dentro do carro, ele vê sentada a mulher que imaginava nunca mais rever e jamais poder ter ao seu lado. Cresce a música, sobem os créditos, acaba o filme. Fora do cinema, a realidade tenta nos ensinar que não existem paixões impossíveis por não existirem mais paixões. Que homens e mulheres hoje se relacionam. Tem um caso. Ou ficam. Será ? Não acredito. E isto que sinto por você se chama o que ? Creio não haver mais com tanta freqüência a “paixão impossível”, porque a sociedade se tornou mais complacente, mais compreensiva, talvez até cansada de ver romeus e julietas se multiplicarem.
Não existem mais tanta impossibilidade para o amor quanto existia antes. Casamentos se desfazem, distâncias são vencidas, enormes diferenças de idade ignoradas, barreiras sociais e religiosas caem por terra, culturas distintas são assimiladas, tudo em nome do amor. Tudo isso praticamente eliminou a impossibilidade, não a paixão. Hoje ela apenas não maltrata tanto quanto antes. O que impede o amor agora entre duas pessoas, é apenas a misteriosa energia que emana de cada uma delas e as fazem vibrar em sintonias semelhantes ou diferentes, mantendo-as mais ou menos afastadas. Ou mais ou menos próximas.
Mas, esta é também a mesma energia que as une de forma inapelável, as vezes subitamente, as vezes lentamente, mas sempre irresistível. O próprio cinema nos mostra isso. Como Marcelo Mastroianni e Shirley Maclaine em Paixão de Outono, que esperaram por 40 anos ela ficar viúva, para no mesmo dia do funeral confessarem um amor latente. Ou Clint Eastwood e Maryl Strep, em As Pontes de Madison, que em uma semana amaram-se para toda a vida. Ou Jeremy Iron e Juliette Binoche em Perdas e Danos, que desistiram de lutar contra a inexplicável energia.
Talvez a vida real não tenha o mesmo charme que a das telas, mas uma imita a outra e os finais felizes nem sempre parecem ser assim para todos. Mas são; para quem percebe que o amor é bem mais forte que a lógica. Não importa quem acaba com quem, se serão felizes para sempre ou se seguirão caminhos diversos depois do amor. Ou do filme. O que importa é que de uma forma ou de outra, ele fez a história. The end.

19 abril, 2009

Full Moon

Surpreende-me a lucidez de certas pessoas diante do que as cerca. Não concordo com algumas das suas verdades, mas respeito profundamente o fato delas serem tão definidas e principalmente autenticas, embora passageiras. Não passageiras em função do tempo vivido nem do tempo por viver, mas porque é da natureza de quem se ocupa com a mecânica da vida ser dinâmico; já que ela própria, a vida, assim o é. A certeza de hoje será a dúvida de amanhã ou talvez o contrário.
Considerações sobre o bem e o mal, Borges, igualdade, conhecimento, sabedoria e outras coisas deste pântano que é o pensamento; me parece bom motivo para abrir debates imaginários. Discordar de Borges, das Escrituras, das letras de John Lennon da utilidade das pirâmides ou de qualquer outra coisa considerada definitiva, não é audácia. Certas pessoas buscam se ajustar ao mundo; outras procuram ajustar o mundo a sí. Portanto, deve-se às segundas qualquer progresso que acontece; caso contrário o mundo permaneceria inalterado indefinidamente. Concordamos portanto em discordar.
Deixemos de lado o céu e o inferno de Borges, já que todo mundo desenvolveu aquilo que chama de modo de ver e sentir o mundo em cima da vida concreta, real; enquanto Borges sobrevoava o terreno do desconhecido, do pós-morte e a visão católica de premio e castigo. Para muita gente a visão do mundo me parece exatamente o que ela própria é: ingênua, romantica e sonhadora. Nada mais belo entretanto que a ingenuidade, o romantismo e o sonho.
Discordamos a partir da possibilidade que se levanta, do bem e do mal serem faces de uma só moeda, na qual a cultura ocidental é o metal que as separa. Não falo do bem que existe em mim quando ajudo uma velhinha a atravessar a rua ou do mal que existe, também em mim, quando troco as etiquetas de preço no supermercado. Falo do Bem e do Mal maísculos. Não consigo ver Ghandi exterminando ingleses em câmaras de gás, nem consigo ver Hitler recebendo refugiados cubanos. Menos ainda, consigo vê-los sentados à mesma mesa, sequer para uma partida de gamão. O essencialmente bom e o essencialmente mau trilham caminhos diferentes em direções diferentes. Estão separados não por uma cultura ocidental, oriental (onde bem e mal também existem e o mau é punido impiedosamente), mediterrânea ou polar: estão separados naturalmente. Eles são anteriores às culturas e não o contrário. Antes que Moisés descesse do Monte Sinai para informar à humanidade que matar é pecado, alguns homens matavam e outros não. Depois que ele fez a sua performance, com aquelas pedras gravadas, raios, trovões e tudo mais; nada mudou. Bem e Mal continuaram existindo espontaneamente e incompatíveis. São moedas diferentes. Não dá para cambiar 6 Maus por 1,5 Bom ou 3 Bons por 12 Maus. Entendo porém, que mesmo vendo as coisas desta forma, surgem duas perguntas fundamentais. A primeira é: há que se conviver com as duas moedas por sermos simplesmente seres humanos ? A segunda é: há que se punir os maus e premiar os bons ? Para mim, ambas as respostas são um audacioso não. A convivência entre o bem e o mal plenos, é desnecessária e naturalmente inviável. São dois anjos de uma asa só, abraçados; mas cada um voando para um lado. Quanto à premiar ou punir, é incoerente e inútil; pois usamos um código para avaliar outro completamente diferente. Cada qual encontra sozinho e a seu modo, aquilo que considera ele próprio, o premio ou a punição. À menos que os seguidores da ética dos monges avaliassem apenas os monges, enquanto os que seguem a ética dos piratas avaliassem apenas os piratas. O que os levaria, involuntariamente, de volta a Borges. Que inclusive tem uma imagem muito bonita para descrever a natureza humana. Ele diz que ela é como um pássaro de quatro asas, que voa simultaneamente para o Norte e o Sul, o Leste e o Oeste.
Sei que esta questão é inesgotável, por isso quero encerrar a discussão. Sou hoje uma pessoa em formação. Avaliando ainda a mim mesmo. Jogando coisas fora e tentando por novas em andamento. Não estou pessimista, não estou amargo, não estou cruel. Estou me reestruturando. Levo a vantagem da experiência adquirida e a desvantagem da perplexidade tardia. Cometi grandes enganos neste tempo e tive que identifica-los e me recuperar deles rapidamente. Quanto às minhas certezas, são barco e velas que mudam de rumo em meio à travessia. Navegar é impreciso, corrigir bruscamente a rota às vezes indispensável, mas é inquietante. Se a literatura não me fizer gente, que ao menos a vida, as marés e suas surpresas o façam.

22 março, 2009

O Verão de '42.

Quando assisti pela primeira vez O Verão de 42 (Summer of ’42) fiquei fascinado pelo personagem Ermie, um adolescente sonhador, romântico, puro, ingênuo e sensível.
Para quem não viu o filme, Ermie e mais dois amigos estão passando o verão numa pequena cidade na costa da Flórida e em busca de suas primeiras experiências sexuais. Dos outros dois amigos, um é um garoto bem menor, completamente desajeitado, amedrontado e desconhecedor de qualquer vestígio ou possibilidade de relacionamento sexual. Pouco importante tanto na aventura quanto no roteiro.
O terceiro personagem é o Oscy. Esperto, cheio de malícia e esquemas para tentar a descoberta do mistério que os fascina e amedronta. Anda com uma camisinha no bolso para dar sorte.
Ermie apaixona-se por Dorothy, personagem de Jennifer O'Neill, uma belíssima mulher que vive sozinha numa casa espetada à beira de uma escarpa e de frente para o sempre mal humorado Atlântico Norte. Dorothy é casada com um soldado, que está na Europa em Guerra e acaba morrendo em combate, abrindo caminho para que Ermie realize seu sonho impossível. Em uma magistral cena cinematográfica, Dorothy arrasada e desnorteada com o telegrama recebido onde o Governo do Estados Unidos lamentava informar etc. acaba recebendo a inesperado visita de Ermie e entre lágrimas e uma carência abissal, faz sexo, amor e saudade ao mesmo tempo, com ele.
Na época, achei o Oscy um exemplo de insensibilidade e machismo, interessado apenas em dar um jeito de comer alguém, desprezando completamente sentimentos e atropelando emoções.
O tempo passou e agora encontro Summer of ’42 em DVD, abandonado numa locadora que liquida seu estoque. Compro e assisto de novo. E acho o Ermie um grande ingênuo, masoquista e sofredor, enquanto vejo no Oscy o sábio de toda a história. Se a intenção era descobrir o sexo, que isto tivesse sido feito e fim de papo.
Objetividade, sem envolvimentos desnecessários e emoções para arrastar pelo resto da vida. Freud aplaudiria de pé. Isto sim é que significa saber o que se quer da vida. Por isso ele rapidamente fatura a linda loirinha Miriam e experimenta o sexo até ficar trôpego, quase desfalecendo em plena areia de Malibu.
Como Ermie e Oscy não mudaram nada, visto serem personagens de ficção gravadas em 35 mm de celulóide, portanto mudei eu. Os mais críticos e sensíveis dirão que perdi a emoção, os valores acima do sexo e do descartável, aqueles só revelados pelo amor, pelo sentimento, pela entrega total.
Acho que não os perdi, mas tenho certeza de que os gastei bastante. Milhares de páginas de poemas lidos e escritos, de canções cantadas e choradas, quilômetros e mais quilômetros de terra, céu ou mar atravessados em busca de um par de olhos ou de um sorriso, incontáveis horas olhando o telefone e a caixa de correspondência parecem ter esgotado em grande parte as minhas possibilidades de ser –novamente- Ermie.
Porque junto com o amor vem o desamor, a tristeza, a dor de ver tudo se acabar, a certeza de que não é preciso tanto sofrimento para se saber capaz de amar. Como diz o velho Vinícius, é muito triste quando se vê tudo morrer e ainda existe o amor que mente para esconder que o amor presente não tem mais nada para dizer. Para continuar com o apoio da música brasileira, troco de disco e deixo o complemento para Chico Buarque, que diz hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito, exijo respeito, não sou mais um sonhador. Antes de amar qualquer pessoa é preciso que amemos a nós mesmo, caso contrário estaremos anulando qualquer possibilidade futura de querer bem.
Há um limite para o querer bem e este limite é que permite aos que o descobrem, seguir querendo. Parece um contra-senso, mas tem lógica. Se alguém abre mão de tudo por amor, estará abrindo mão de si próprio e portanto da própria validade de seus atos e sentimentos.
Oscy gostaria muito de ir para a cama com Dorothy, mas sabia que isto só seria possível pelo caminho do sofrimento e preferiu não abrir mão de nada, nem da alegria em suas férias e menos ainda se afastar do seu objetivo. Estava certo.
Se você pretende passar a sua vida no alto de uma montanha, não tem sentido se apaixonar por uma sereia. O amor não é cego nem mudo. Talvez nos deixe um pouco burros, mas ele sempre nos mostra claramente a possibilidade de sermos felizes ou não.
Daí em diante, é uma questão de auto-estima. Neste verão de 2009, fico com Oscy.

14 março, 2009

Carta Anônima

Escreves em vermelho, a cor da paixão ou quem sabe, da tragédia. Por isso, me refugio no Georgia, corpo 14, a fonte anônima de um computador cheio de recordações. Memória é apenas o hardware. A vida é software. Não há o que perdoar pelo tempo que se passou entre minha carta e a sua. A rampa do amor carece de dedicação e percebo que estás ladeira acima, embora com o freio de mão puxado, o que só faz tornar mais árdua e lenta a subida. esta altura você já percebeu que estou com ciúme. Sou assim. Possessivo, exclusivista, egoísta centralizador, insuportável. Ácido, mordaz, irônico, dominador, perigoso. Os diferentes são aqueles que fisicamente não se parecem conosco. Os semelhantes possuem o mesmo tom de pele, o mesmo olhar, a mesma velocidade. A mente e suas preferências costumam moldar o corpo. Por isso é fácil, quando se está atento, reconhecer quem gosta de cool jazz e quem é axé. Quem lê Manoel Puig e quem lê Caras. Quem faz do amor um bote salva-vidas e quem faz dele, o próprio mar. Estive procurando você em Montevidéo. A cidade parece uma cápsula, onde o tempo permanece perplexo. A qualquer instante um ônibus para o passado pode atravessar seu caminho e é preciso ter cuidado para não se perder entre espanhóis que ainda tentam dominar qualquer coisa, ouro sem brilho, bocas sem dentes, seios exagerados, cabelos negros como a definitiva noite que se espalha en Latino America. Soy loco por ti de amores. Capinam é um gênio. Não considero indispensável a compatibilidade total para que a vida se torne mais suave. O amor é um grande espelho, mas é quase nada. É feito de coisas voláteis, miudezas, indícios, possibilidades. Coisas que se enroscam com o elevador lotado, o sinal fechado, o despertador quebrado, o imposto territorial. Crie espaço; é fácil. Primeiro, deixe que toquem Fantasmão; não espere que ninguém se preocupe com a força centrífuga. Esqueça a luta armada, a bala perdida, Lula, o mensalão, Dilma Neves Serra (assim mesmo, sem vírgulas) e os grampos. Depois, faça sexo, o mais que puder; durma e acorde na hora certa; tome uma aspirina por dia; ria, ria muito. Se isto resolve alguma coisa? Não sei. Nunca consegui fazer nem a primeira parte. Por que estou com ciúmes de você ? Nunca ouvi tua voz, nunca senti o teu olhar, nunca minha mão tocou em teus cabelos, jamais escutamos juntos As Times Goes By. Somos até aqui, amigos virtuais e amigos costumam ficar felizes com a felicidade do outro. Acho que estou feliz por você ter encontrado alguém com quem possa flutuar. Mas estou com ciúme. É estranho. Eu sou estranho. Estou me sentindo cansado. Tenho trabalhado bastante, durmo muito pouco, não tenho férias há mais de 5 anos. Encontro muita dificuldade para relaxar. As coisas me deixam em eterno estado de vigília. Qualquer coisa. Até o lazer. Leio compulsivamente, como compulsivamente, olho para o aparelho de som e não me animo a escutar o que gosto. Por que toda a mídia nos ajuda a identificar situações de estresse e nunca nos diz como sair delas? Não gosto da medicina. Incomoda-me seu princípio de ter compromisso com os métodos e não com os resultados. Acho que pouco sabemos sobre a mecânica da vida. Muito menos os médicos, sempre às voltas com laboratórios. Por isso não os procuro. Lembro Drummond: “do lado esquerdo carrego os meus mortos, por isso ando meio de lado.” Acho que sei porque tenho ciúmes de você. Na verdade, não é bem ciúmes, naquele sentido físico de não querer que ninguém te toque. É uma espécie de frustração por não poder conviver com alguém com tantos paralelos de personalidade e cultura, sabendo que há alguém que pode fazer isso sempre que desejar. Talvez por nos acharmos raros, não no sentido vaidoso, mas no aspecto da configuração. Aí dá uma ponta desta coisa que chamo de ciúme. Já enchi sua paciência, imagino, falando deste assunto. Esqueça. Não vou viajar neste meio de ano. Tinha programado uma ida até Buenos Aires para pesquisar um pouco Borges e comprar alguns originais em espanhol, mas tive que refazer orçamentos atendendo a um pedido cordial de Obama e portanto, nada de viagens. No máximo uma esticada até Mar Grande. Mas vale a pena. A sensação de quase não ter dívidas é muito tranqüilizadora. Mesmo que custe 2 litros de café e 60 Camels by day. Sinto-me por vezes também hesitante diante do comportamento das pessoas e me pego pensando: não é possível que todas estas pessoas sejam obtusas e eu o único sensato. Tem que ser ao contrário. Elas é que estão sabendo viver e eu aqui detonando meus neurônios com bobagens como sentido da vida, origem de tudo, finalidade, por aí vai. Mas aí, entra uma loteria perigosíssima: se a nossa energia vital se restringir a este planeta, é claro que eles estão certos. Temos que viver da maneira mais confortável possível por aqui e tudo isto se torna perda de tempo. Mas, se a energia seguir seguindo? Ela precisa estar com um mínimo de purificação para ir adiante, senão jamais chegará ao núcleo central. Nesta segunda hipótese, nos estaremos certos. No filme Antes de Partir, Morgan Freeman e Jack Nicholson fazem dois portadores terminais de câncer. Morgan acredita em Deus e na vida eterna; Jack não. Em determinado momento do filme eles discutem sobre isso e Jack encerra a conversa dizendo: "Sabe qual é a vantagem que eu levo sobre você? Se eu estiver errado, eu saio ganhando." É uma verdade estranha, mas é uma verdade. Já te disse que coleciono sapos? Não os vivos, mas os de qualquer material inanimado. Tenho mais de 20 sapos espalhados em casa. Em cerâmica, pedra, vidro, metal, gesso etc. Tenho sapos de várias origens geográficas e de todas as formas. Um deles, oriental, deve ter sempre na boca uma moeda, o que segundo os orientais fará com que a fortuna esteja sempre presente. Outro, minúsculo, deve ser mantido sempre perto de dinheiro, pois fará com que este se multiplique. Nenhum entretanto existe que garanta qualquer tipo de sentimento. Por vezes me sinto um dos sapos. Mas, sapo mesmo, sem qualquer vocação para príncipe ou o menor vestígio de princesas pra me beijar. There’s no future in it, Eve; we never should begin’it, Eve. Certa vez perguntaram a Jorge Luis Borges qual o significado da frase “Ninguém o viu desembarcar na unânime noite”, que abre o seu magistral conto As Ruínas Circulares. O que seria a unânime noite? O período obscuro do peronismo ou a sangria dos governos militares? Quem seria o passageiro que desembarcava na noite? Algum herói? Um idealista? Meio surpreendido, Borges respondeu que a frase não significava rigorosamente nada. Ele apenas achara ser uma boa frase para começar um conto. É também, uma boa história para terminar uma carta.

14 fevereiro, 2009

Fragmentos

Pedaços de pensamento, aparentemente sem conexão alguma, frutos de um certo ócio da temporada, quando os neurônios acordam mais tarde, se movimentam lentos sob os 40º centígrados do ambiente e perguntam meio sonolentos se já acabou o horário de verão e começou a temporada da Fórmula 1. Que nada. Ainda falta o Carnaval para o Brasil acordar e quem sabe, ler alguma coisa.
O SILÊNCIO

Há pouco arrumava uns recortes de jornais e alguns cadernos de cultura da Folha, que insisto em guardar e encontrei uma matéria especial sobre Jorge Luis Borges, um escritor argentino já falecido (morreu aos 93 de idade e cego desde os 50) e que me abriu as portas do pensamento livre. Leio e guardo tudo dele ou sobre ele, pois “El Brujo” sem dúvida foi o escritor mais importante do século XX. Nesta matéria está reproduzida uma carta escrita por Borges, onde em certo trecho ele diz: “...uma moça a quem fiz a corte em Palma e da qual cada silencio era uma obra de arte”. Acho que o conceito de silencio concebido, trabalhado como uma obra de arte, é uma verdadeira descoberta borgiana e de uma profundidade absoluta. Somente momentos especiais merecem obras de arte a respeito, sejam elas músicas, poemas, pinturas ou silêncios.
A VÍRGULA

Existe um poema de Lord Byron, criado por volta de 1800, chamado Não Mais Passearemos, onde em certo momento ele escreve: “chega um instante em que o coração precisa tomar fôlego e o amor, descansar.” Embora todo o poema seja admirável, o que mais me fascina nele, é a vírgula. Acho que nunca, em tudo que já li, encontrei uma vírgula tão perfeita, capaz de dar ao verbo a respiração exata e concreta, para seu significado de repouso.
OS ASTROS

Leio num horóscopo para o meu signo, o seguinte: “Seu momento é de definições, não só em relação ao amor, mas a tudo o que você busca para a sua vida. Reflita bastante antes de agir.” Não acho, nem poderia achar, nada sobre a vontade dos astros. Eles são soberanos em suas órbitas. Sei apenas que eles definem um pouco do que somos e podem sinalizar algumas coisas ao longo da vida. Quanto a refletir bastante antes de agir, me parece um conselho aplicável a todos os signos especialmente àqueles que regem as vidas dos que mandam neste país.
A MÚSICA
Gosto de ir buscar na música, palavras que parecem retratar fatias da vida, (em inglês é mais bonito: slices of life) como se a arte insistisse em imitá-la, mesmo sabendo que isto não tem serventia, como tem a porta da rua para o indesejado e para a filosofia popular. Na noite deserta desta casa ouço alguém que ao longe escuta Maria Bethânia dizendo ser “a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma, a sombra da voz, você não me pega, você nem chega a me ver. O cheiro dos livros desesperados não sou eu; seu olho me olha, mas não me pode alcançar”. Mesmo porque quase ninguém rezou a novena de Dona Canô, talvez não tenha sequer existido o mendigo Joãozinho Beija Flor, mas suas pegadas estão em todas as ruas enlameadas da vida.
O SONHO

O tempo da gente já se consumiu? Os barcos na enseada se alinham em paralelas onduladas, apontam um lugar qualquer no horizonte, por onde passou silencioso numa noite qualquer um vapor barato ou um luxuoso transatlântico. O lusitano comandante tinha razão. Dali pra frente só podia piorar para que todos continuássemos a flutuar. Segundo ele, "tudo que flutua balança e se deixou de balançar é porque já não flutua mais". O amor é assim um pouco oceânico e pode deixar na gente aquela estranha sensação de ter ido a Goree só porque pensamos em comprar a passagem e nos lançar ao mar. Daí, a cada vez que vemos uma foto da ilha ou do amor ficamos em dúvida. Estive lá ou não estive?
AS PALAVRAS

Antigamente, quando os astronautas iam até a Lua, havia um instante muito tenso na viagem. Era o momento em que eles se viam obrigados a fazer uma órbita em torno dela, para perder velocidade e poder descer até o solo. Durante esta órbita, um momento crítico do vôo, eles ficavam por cerca de seis minutos por trás da Lua, sobrevoando aquela face que nos é oculta e sem qualquer possibilidade de comunicação com a Terra. Durante aqueles seis absolutamente silenciosos minutos, se algo de errado acontecesse, eles somente poderiam abortar a missão e voltar para casa abatidos (como na música de Vanzollini) ou se espatifarem no terreno misterioso e intocado, feito um pacote bêbado (como na música de Chico Buarque). Por alguma razão me sinto assim escrevendo agora, como se estivesse no lado escuro da Lua, de onde minhas palavras não chegam a lugar nenhum.
O CINEMA

Existem algumas cenas de cinema, que permanecem por muito tempo em nossas memórias. Guardo comigo a visão de Dusty Hofmann mancando pelas madrugadas de Manhattan em Midnight Cowboy; do seminarista ajudante de Sean Connery sendo seduzido por uma aldeã, sobre sacos de batatas no mosteiro em O Nome da Rosa; de Max Von Sidow encharcado de suor ao sonhar navegando num rio de cadáveres em A Hora do Lobo, de Bergmann. Uma cena entretanto me marca mais profundamente. Não se trata de nenhum grande filme, sequer é uma cena surpreendente, porém por alguma razão, entre outras ela se destaca na minha memória emocional. É em Viver Por Viver, quando Ives Montand, resolve sair de uma reclusão voluntária num chalé nas montanhas nevadas de Chamonix, após uma paixão impossível. Ele caminha até o carro parado do lado de fora e coberto pela neve. Antes de entrar no carro ele se debruça e com o braço retira a neve acumulada sobre o pára-brisa. Através do vidro, dentro do carro, ele vê sentada a mulher que imaginava nunca mais rever e jamais poder ter ao seu lado. Cresce a música, sobem os créditos, acaba o filme.
Fora do cinema, a realidade tenta nos ensinar que não existem paixões impossíveis por não existirem mais paixões. Que homens e mulheres hoje se relacionam. Tem um caso. Ou ficam. Será ? Não acredito. Creio não haver mais com tanta freqüência a “paixão impossível”, porque a sociedade se tornou mais complacente, mais compreensiva, talvez até cansada de ver romeus e julietas se multiplicarem. Não existem mais tanta impossibilidade para o amor quanto existia antes. Casamentos se desfazem, distâncias são vencidas, enormes diferenças de idade ignoradas, barreiras sociais e religiosas caem por terra, culturas distintas são assimiladas, tudo em nome do amor. Tudo isso praticamente eliminou a impossibilidade, não a paixão. Hoje ela apenas não maltrata tanto quanto antes. O que impede o amor agora entre duas pessoas, é apenas a misteriosa energia que emana de cada uma delas e as fazem vibrar em sintonias semelhantes ou diferentes, mantendo-as mais ou menos afastadas. Ou mais ou menos próximas. Mas, esta é também a mesma energia que as une de forma inapelável, às vezes subitamente, às vezes lentamente, mas sempre irresistível. O mesmo cinema nos mostra isso.
Como Marcelo Mastroianni e Shirley Maclaine em Paixão de Outono, que esperaram por 40 anos ela ficar viúva, para no mesmo dia do funeral confessarem um amor latente. Ou Clint Eastwood e Maryl Strep, em As Pontes de Madison, que em uma semana amaram-se para toda a vida. Ou Jeremy Iron e Juliette Binoche em Perdas e Danos, que desistiram de lutar contra a inexplicável energia. Talvez a vida real não tenha o mesmo charme que a das telas, mas uma imita a outra e os finais felizes nem sempre parecem ser assim para todos. Mas são, para quem percebe que o amor é bem mais forte que a lógica. Não importa quem acaba com quem, se serão felizes para sempre ou se seguirão caminhos diversos depois do amor. Ou do filme. O que importa é que de uma forma ou de outra, ele fez a história. The end.
O AMOR
O enigma de Coleridge jamais saiu do meu painel luminoso, piscando cadenciado na noite infinita: “e se você dormisse, e se você sonhasse, e se no sonho você fosse ao paraíso e colhesse uma rosa, e se ao acordar a rosa estivesse em suas mãos; e então?” Meu guia e mapa, ele me orienta em direção a esta rosa misteriosa, a este fragmento de paraíso que podemos conquistar sem sair do lugar, apenas com o coração aberto ao amor. E então? A pergunta ilumina a espaçonave, atravessa suas blindadas escotilhas e se lança no espaço qual cometa vermelho, meio botão de rosa, meio coração ferido, espalhando às vezes pétalas, às vezes gotas de sangue, no universo sem limites.
AS CONEXÕES

Aprendi com as Profecias Celestinas, que não existem coincidências, que nada acontece por casualidade. Acredito nesta tese e estou sempre atento a tudo que possa parecer acidental em minha vida. Acho que o silencio, a vírgula, os astros, a música, o sonho, as palavras, o cinema, o amor, juntos, dizem alguma coisa. Claro que tudo é muito vago e misterioso. Sou quase um desconhecido para mim mesmo e sei que nada no mundo pode neste instante, fazer com que qualquer coisa tenha sentido, possibilidade e objetivo. Mas sei também que somos capazes de criar apenas os desencontros. Os encontros, estes só precisam do tempo, porque são inevitáveis. Como o silencio, a virgula, a música, os astros etc. etc. etc.

29 janeiro, 2009

Chico: Amores serão sempre amáveis (Final)

Seria portanto Chico Buarque de Hollanda um machista irredutível e asqueroso, que só vê a mulher como uma entidade a serviço do homem, sob sua orientação e guarda ?
Nem tanto. Ou pelo menos nem sempre. A partir da moça feia iludida com o som da banda Chico Buarque tratou de forma bem melhor as mulheres em inúmeras ocasiões, todas elas de uma beleza difícil de ser igualada.
A habilidade jamais superada por qualquer compositor vivo ou morto, em lidar com as palavras da língua portuguesa, permitiu a Chico Buarque escrever coisas como ...ela faz que não dá conta de sua graça tão singela, o pessoal se desaponta, vai pro mar, levanta a vela.
Esta belíssima frase, de uma simplicidade franciscana em sua fluência, uma riqueza barroca em sua imagem e uma complexa erudição em sua construção musical, está em Januária, uma declaração de amor praieira, por uma musa pela qual ...até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela.
Januária, junto com Carolina parecem traduzir os dois momentos de maior ternura pela mulher em toda a carreira de Chico Buarque. Carolina também trás em sua letra momentos de incrível lirismo. Carolina, nos teus olhos fundos, guardas tanto amor, o amor de todo este mundo (...) Carolina e Januária são momentos de carinho, afago, namoro, cuidado, pureza e inocência.
Outro destes momentos de reverência pela mulher está na simplicidade de Juca, uma composição que até Ari Barroso poderia chamar carinhosamente de sambinha, por sua singeleza e que vale a pena reproduzir a letra inteiramente.
Juca foi autuado em flagrante, como meliante, pois sambava bem diante da janela de Maria, bem no meio da alegria a noite virou dia, o seu luar de prata virou chuva fria, sua serenata não acordou Maria. / Juca ficou desapontado e declarou ao delegado não saber se amor é crime, se samba é pecado e em legítima defesa batucou assim na mesa: o delegado é bamba na delegacia, mas nunca fez samba, nunca viu Maria.
Bonito demais. No decorrer de sua obra, a louvação à mulher não é uma constante, embora o tema acompanhado de todo o universo que o cerca, esteja sempre presente, mesmo ou principalmente, nos instantes de mais intensa politização.
Como em Angélica feita para Zuzu Angel, que enfrentava a ditadura e seus prepostos mal humorados, mal amados, mal educados e mal resolvidos; em busca de seu filho desaparecido nas valas comuns abertas pelo país ou mais provavelmente atirado ao mar desde um decadente avião da Força Aérea, que fazia este tipo de vôo rotineiramente para “defender a Nação da ameaça comunista”. Como se eles não fossem muito piores que qualquer outra ameaça.
Nesta música Chico mescla sua admiração pela coragem de Zuzu (que morreria depois num acidente de carro tão estranho quanto o que matou Juscelino) com uma ternura tristemente respeitosa pela figura feminina. Também vale a pena rever a letra primorosa em sua íntegra.
Quem é essa mulher, que canta tanto este estribilho, só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar. /Quem é essa mulher, que canta sempre este lamento, só queria lembrar o tormento, que fez o meu filho suspirar. /Quem é essa mulher, que conta sempre o mesmo arranjo, só queria agasalhar meu anjo, e deixar seu corpo descansar. / Quem é essa mulher, que canta como dobram os sinos, queria cantar por seu menino, que ele já não pode mais cantar. /Quem é essa mulher,que canta sempre este estribilho, só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar.
Este talvez seja um dos momentos mais brilhantes da vertente política da obra de Chico Buarque e uma das raras em que a mulher está presente neste contexto. Aqui ele expõe o lado covarde dos crimes praticados por um grupo de generais desconhecedores de toda a cultura humanista mundial e de seus rumos, ao mesmo tempo em que registra a impotência da mulher como mãe diante de atrocidades como estas, com uma infinita beleza.
Existe um outro momento fascinante desta relação de Chico Buarque com a mulher, quando ele abre talvez, uma porta de emergência para a necessidade de elogiar a figura feminina e dizer o quanto precisa dela, driblando quem sabe a propalada timidez, quem sabe a própria tendência a ser econômico em elogios à mulher. Talvez para dar vazão a uma carência reprimida ele compôs Tanto Amar que também precisa da letra inteira para ser apreciada em sua sutileza inigualável.
Amo tanto e de tanto amar, acho que ela é bonita, tem um olho sempre a boiar e outro que agita. / Tem um olho que não está, meus olhares evita, outro olho a me arregalar, sua pepita. / A metade do seu olhar tá chamando pra luta aflita, a metade quer madrugar na bodeguita. /Se seus olhos eu for cantar, um seu olho me atura, outro olho vai desmanchar, toda a pintura. /Ela pode rodopiar e mudar de figura, a paloma do seu mirar vira miura. /É na soma do seu olhar que eu vou me conhecer inteiro, nasci pra enfrentar o mar, sou faroleiro. / Amo de tanto e de tanto amar, acho que ela acredita, tem um olho a pestanejar e outro me fita. / Suas pernas vão me enroscar num balé esquisito, seus dois olhos vão se encontrar no infinito. / Amo tanto e de tanto amar, em Manágua temos um chico, já pensamos em nos casar, em Porto Rico.
Aí está. Impossível tecer um poema mais surpreendente para celebrar a beleza feminina em uma manifestação pouco atraente, porém ainda assim bela. Somente o talento inconfundível de Chico e sua profunda sensibilidade, para enfrentar o tema de maneira tão arriscada, mergulhar tão fundo no conceito da beleza feminina isenta da forma e voltar de lá com uma obra prima. Sair-se bem de uma empreitada desta entretanto não exige apenas habilidade, mas um sentimento permanente de admiração pela fonte de inspiração.
Um pouco deste sentimento e do encanto diante da possibilidade do amor ou de o homem lutar por ele, emerge na magnífica Futuros Amantes onde, numa das mais brilhantes conceituações a respeito do amor, Chico afirma (...) amores serão sempre amáveis, futuros amantes quiçá se amarão sem saber, com o amor que um dia eu deixei pra você.
Irretocável. A definição “amores serão sempre amáveis” é provavelmente a coisa mais bonita que já se escreveu em língua portuguesa a este respeito. A dupla leitura que ele permite é um primor de síntese e pensamento. Assim Chico Buarque é amável, mesmo quando coloca a mulher em situações pouco privilegiadas, dentro do seu universo criativo.
Essa amabilidade sempre presente no trato com a mulher, mesmo quando a condena a um papel passivo e secundário, revela na obra de Chico Buarque um componente que se acentua quando a melodia se soma à letra: a mágoa.
Chico parece ressentido com as mulheres e suas composições dizem isso queixosa e claramente. ao tempo em que as letras são irônicas, machistas, gozadoras, cínicas ou críticas. Enquanto suas letras fustigam as mulheres, suas notas musicais a tratam com absoluta suavidade e enlevo, quase carinhosamente, talvez mostrando pra elas o quanto ele precisa delas, mesmo assim. Esta provavelmente é a combinação mágica que permitiu a Chico Buarque ir até onde foi no coração feminino.
Se tomarmos como verdadeira a tese nelsonrodriguiana de que toda mulher -exceto as anormais- gosta de apanhar; e se tomarmos também como verdadeira a réplica feminina, de que toda mulher gosta de ser cortejada, Chico matou todas as coelhas, seguindo estes dois princípios simultaneamente. Bater e afagar, num jogo psicológico que desenvolvido até o limite também pelo Marquês de Sade e que subjuga completamente o outro. O cinema e a literatura mostraram isto muito bem em inúmeras ocasiões. Este é também o método dos domadores em circos. Depois do chicote, o torrão de açúcar. As feras preferem obedecer e ganhar um doce que apenas apanhar.
Mas se formos mais benevolentes com Chico, aceitando que ele não seguiu nenhuma fórmula maquiavélica de forma deliberada para subjugar sua platéia feminina e acharmos que ele apenas fez o que lhe deu vontade de fazer, aí então fica evidente que ele falou com todas as suas representantes, batendo em quem gosta de apanhar e afagando quem se enrosca e chega pro lado, querendo agradar, como disse Caymmi (música João Valentão). Agradou a gregas e troianas. Mulheres de Atenas e Januárias, portanto.
(Este estudo de parte da obra de Chico Buarque foi desenvolvido por mim sem qualquer pretensão acadêmica ou analítica. São apenas as impressões de um incondicional admirador do trabalho deste artista único na arte brasileira.)

Chico Buarque: resumo dos blocos anteriores

PRIMEIRA PARTE
A moça feia debruçou na janela, pensando que a banda tocava pra ela. A partir desta frase meio cruel escondida na letra de A Banda, Francisco Buarque de Hollanda iniciava um conturbado relacionamento público com o universo feminino, relacionamento este que se revelaria com o tempo, de extrema riqueza e constante aperfeiçoamento. ... A machismo de Chico a que me refiro tem a ver com a minha, a sua mulher. A mulher que passa pelo corredor do shopping sem se ver refletida nas vitrines, que não se ilude quando o filho sai na página policial e que manda o marido à merda quando ele chega em casa com oito amigos pra almoçar. A mulher que na vida real chama a mim e a você de machão. Mas que desmaia quando vê Chico Buarque de Hollanda chegando. Porque a vida, infelizmente, não tem o mesmo encanto que a arte.
SEGUNDA PARTE
A visão da mulher submissa seria assumida plenamente em Cotidiano onde ela aparece de corpo inteiro. Talvez se trate da mulher ainda deste mesmo tipo de trabalhador, o pedreiro, pelos detalhes da sua vida, como a hora de acordar e o almoço, descrito na magnífica letra. Mas pode também ser a mulher de qualquer operário. ... Toda noite ela diz pra eu não me afastar, / meia-noite ela jura eterno amor / e me aperta pra eu quase sufocar / e me beija com a boca de pavor. A submissão aí é clara, sem metáforas. A mulher cumpre todas as suas supostas obrigações domésticas, de companheira e fêmea, motivada explicitamente pelo pavor de que o seu parceiro a deixe.
TERCEIRA PARTE
Na obra de Chico Buarque mesmo quando a mulher é colocada com destaque em cena, ainda assim é ela que se desespera porque seu homem não a quer mais. Em Bastidores ela se dilacera ao vê-lo pelo salão a caçoar de mim e embora seja o grande sucesso da noite, com os homens a se rasgar por mim e todo o cabaré me aplaudiu de pé, quando cheguei ao fim, ainda assim ela corre apavorada atrás dele, pois confessa não me troquei, voltei correndo ao nosso lar, voltei pra me certificar que tu nunca mais, vais voltar, vais voltar, vais voltar. ... Em Mulheres de Atenas a interpretação é mais complexa, porque Chico se posiciona de forma dúbia. Tomando os mais explícitos gestos de submissão supostamente praticados pelas mulheres dos guerreiros gregos que (...) quando fustigadas não choram, se ajoelham pedem, imploram, mais duras penas, ou então quando eles embarcam soldados, elas tecem longos bordados, mil quarentenas e aconselhando suas ouvintes a mirarem-se no exemplo daquelas mulheres, a visão crítica do papel subalterno da mulher fica tão escancarada que só pode ser interpretada como uma suprema ironia. Mas, e se não foi ironia? E se ele disse exatamente o que queria dizer? Não há como saber. QUARTA PARTE

Se entornaste a nossa sorte pelo chão, / se na bagunça do teu coração, / meu sangue errou de veia e se perdeu. Como, se na desordem do armário embutido, /meu paletó enlaça o teu vestido /e o teu sapato ainda pisa no meu. Como, se nos amamos feito dois pagãos, /teus seios ainda estão nas minhas mãos, / me explica com que cara eu vou sair. Não, acho que está te fazendo de tonta, /te dei meus olhos pra tomares conta, /agora conta como hei de partir. A perplexidade masculina diante da mulher que não o quer mais embota tenham feito sexo exaustivamente. Coloca-se também a responsabilidade jogada sobre ela -mais uma vez- por todo o sofrimento masculino. “Ela” entornou a sorte pelo chão, é “dela” a bagunça no coração, responsável pela perda dos mais elevados sentimentos do homem. ... Chico Buarque ao meu ver atinge o máximo de definição desta visão decepcionante, passiva e submissa da mulher numa música praticamente inédita, da qual não conheço qualquer gravação. Seu título é Umas e Outras. ... Até que ponto Chico Buarque de Hollanda, o eterno objeto de desejo das mulheres brasileiras, consegue levar o visível machismo embutido em sua obra? Até onde este machismo reflete uma filosofia própria ou é um grito melódico de socorro pelo casamento que se destroça um pouco mais a cada dia?