14 março, 2009

Carta Anônima

Escreves em vermelho, a cor da paixão ou quem sabe, da tragédia. Por isso, me refugio no Georgia, corpo 14, a fonte anônima de um computador cheio de recordações. Memória é apenas o hardware. A vida é software. Não há o que perdoar pelo tempo que se passou entre minha carta e a sua. A rampa do amor carece de dedicação e percebo que estás ladeira acima, embora com o freio de mão puxado, o que só faz tornar mais árdua e lenta a subida. esta altura você já percebeu que estou com ciúme. Sou assim. Possessivo, exclusivista, egoísta centralizador, insuportável. Ácido, mordaz, irônico, dominador, perigoso. Os diferentes são aqueles que fisicamente não se parecem conosco. Os semelhantes possuem o mesmo tom de pele, o mesmo olhar, a mesma velocidade. A mente e suas preferências costumam moldar o corpo. Por isso é fácil, quando se está atento, reconhecer quem gosta de cool jazz e quem é axé. Quem lê Manoel Puig e quem lê Caras. Quem faz do amor um bote salva-vidas e quem faz dele, o próprio mar. Estive procurando você em Montevidéo. A cidade parece uma cápsula, onde o tempo permanece perplexo. A qualquer instante um ônibus para o passado pode atravessar seu caminho e é preciso ter cuidado para não se perder entre espanhóis que ainda tentam dominar qualquer coisa, ouro sem brilho, bocas sem dentes, seios exagerados, cabelos negros como a definitiva noite que se espalha en Latino America. Soy loco por ti de amores. Capinam é um gênio. Não considero indispensável a compatibilidade total para que a vida se torne mais suave. O amor é um grande espelho, mas é quase nada. É feito de coisas voláteis, miudezas, indícios, possibilidades. Coisas que se enroscam com o elevador lotado, o sinal fechado, o despertador quebrado, o imposto territorial. Crie espaço; é fácil. Primeiro, deixe que toquem Fantasmão; não espere que ninguém se preocupe com a força centrífuga. Esqueça a luta armada, a bala perdida, Lula, o mensalão, Dilma Neves Serra (assim mesmo, sem vírgulas) e os grampos. Depois, faça sexo, o mais que puder; durma e acorde na hora certa; tome uma aspirina por dia; ria, ria muito. Se isto resolve alguma coisa? Não sei. Nunca consegui fazer nem a primeira parte. Por que estou com ciúmes de você ? Nunca ouvi tua voz, nunca senti o teu olhar, nunca minha mão tocou em teus cabelos, jamais escutamos juntos As Times Goes By. Somos até aqui, amigos virtuais e amigos costumam ficar felizes com a felicidade do outro. Acho que estou feliz por você ter encontrado alguém com quem possa flutuar. Mas estou com ciúme. É estranho. Eu sou estranho. Estou me sentindo cansado. Tenho trabalhado bastante, durmo muito pouco, não tenho férias há mais de 5 anos. Encontro muita dificuldade para relaxar. As coisas me deixam em eterno estado de vigília. Qualquer coisa. Até o lazer. Leio compulsivamente, como compulsivamente, olho para o aparelho de som e não me animo a escutar o que gosto. Por que toda a mídia nos ajuda a identificar situações de estresse e nunca nos diz como sair delas? Não gosto da medicina. Incomoda-me seu princípio de ter compromisso com os métodos e não com os resultados. Acho que pouco sabemos sobre a mecânica da vida. Muito menos os médicos, sempre às voltas com laboratórios. Por isso não os procuro. Lembro Drummond: “do lado esquerdo carrego os meus mortos, por isso ando meio de lado.” Acho que sei porque tenho ciúmes de você. Na verdade, não é bem ciúmes, naquele sentido físico de não querer que ninguém te toque. É uma espécie de frustração por não poder conviver com alguém com tantos paralelos de personalidade e cultura, sabendo que há alguém que pode fazer isso sempre que desejar. Talvez por nos acharmos raros, não no sentido vaidoso, mas no aspecto da configuração. Aí dá uma ponta desta coisa que chamo de ciúme. Já enchi sua paciência, imagino, falando deste assunto. Esqueça. Não vou viajar neste meio de ano. Tinha programado uma ida até Buenos Aires para pesquisar um pouco Borges e comprar alguns originais em espanhol, mas tive que refazer orçamentos atendendo a um pedido cordial de Obama e portanto, nada de viagens. No máximo uma esticada até Mar Grande. Mas vale a pena. A sensação de quase não ter dívidas é muito tranqüilizadora. Mesmo que custe 2 litros de café e 60 Camels by day. Sinto-me por vezes também hesitante diante do comportamento das pessoas e me pego pensando: não é possível que todas estas pessoas sejam obtusas e eu o único sensato. Tem que ser ao contrário. Elas é que estão sabendo viver e eu aqui detonando meus neurônios com bobagens como sentido da vida, origem de tudo, finalidade, por aí vai. Mas aí, entra uma loteria perigosíssima: se a nossa energia vital se restringir a este planeta, é claro que eles estão certos. Temos que viver da maneira mais confortável possível por aqui e tudo isto se torna perda de tempo. Mas, se a energia seguir seguindo? Ela precisa estar com um mínimo de purificação para ir adiante, senão jamais chegará ao núcleo central. Nesta segunda hipótese, nos estaremos certos. No filme Antes de Partir, Morgan Freeman e Jack Nicholson fazem dois portadores terminais de câncer. Morgan acredita em Deus e na vida eterna; Jack não. Em determinado momento do filme eles discutem sobre isso e Jack encerra a conversa dizendo: "Sabe qual é a vantagem que eu levo sobre você? Se eu estiver errado, eu saio ganhando." É uma verdade estranha, mas é uma verdade. Já te disse que coleciono sapos? Não os vivos, mas os de qualquer material inanimado. Tenho mais de 20 sapos espalhados em casa. Em cerâmica, pedra, vidro, metal, gesso etc. Tenho sapos de várias origens geográficas e de todas as formas. Um deles, oriental, deve ter sempre na boca uma moeda, o que segundo os orientais fará com que a fortuna esteja sempre presente. Outro, minúsculo, deve ser mantido sempre perto de dinheiro, pois fará com que este se multiplique. Nenhum entretanto existe que garanta qualquer tipo de sentimento. Por vezes me sinto um dos sapos. Mas, sapo mesmo, sem qualquer vocação para príncipe ou o menor vestígio de princesas pra me beijar. There’s no future in it, Eve; we never should begin’it, Eve. Certa vez perguntaram a Jorge Luis Borges qual o significado da frase “Ninguém o viu desembarcar na unânime noite”, que abre o seu magistral conto As Ruínas Circulares. O que seria a unânime noite? O período obscuro do peronismo ou a sangria dos governos militares? Quem seria o passageiro que desembarcava na noite? Algum herói? Um idealista? Meio surpreendido, Borges respondeu que a frase não significava rigorosamente nada. Ele apenas achara ser uma boa frase para começar um conto. É também, uma boa história para terminar uma carta.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi pai! Que legal o seu blog, descobri por acaso navegando pela net e adorei.
Saudades...
Paloma!