


A sessão de arte do Popular exibia filmes de Ingmar Bergmann, Antonioni, Buñuel, Piér Paul Pasolini, Truffaut e outros cineastas herméticos, simbolistas e devastadores de conceitos morais, sociais, sexuais, religiosos, patrióticos e outros menos entranhados em nossos raciocínios.
Certa noite/madrugada entretanto, ao chegarmos ao Varandá, permanecemos mudos, observando vagamente o que acontecia em volta sem que a inevitável discussão sobre o filme se iniciasse. Um dos companheiros anunciou que não estava a fim de pirar e que iria “dar uma” antes de qualquer coisa, saindo imediatamente com a primeira das moças com quem cruzou o olhar. Havíamos acabado de assistir O Anjo Exterminador, de Luiz Buñuel, um dos filmes mais intrigantes já realizados pelo cinema.
Um roteiro simples: durante um jantar na mansão de um dos burgueses de uma pequena cidade, toda a elite local diverte-se, ri e exibe suas qualidades com a desenvoltura natural dos superiores socialmente. Tudo vai bem até que se percebe ser muito tarde, o jantar haver acabado há muito tempo e que ninguém vai embora. Na verdade ninguém consegue ir embora, como se uma força invisível impedisse a saída de qualquer um da sala de jantar.
Sem explicações e sem conseguir sair da sala, eles acabam dormindo por ali mesmo –embora a casa seja enorme- amontoados em sofás e pelo chão. No dia seguinte, o mistério continua. Ninguém consegue sair da sala. Com o passar dos dias sem que se encontre uma –literalmente- saída, as personalidades desmoronam e os burgueses se transformam em selvagens mendigos, moradores de rua, disputando a tapas restos de comida, escavando paredes em busca de um cano d’água e esfarrapados, revelam suas personalidades sórdidas e cruéis.
Um dia, sem qualquer sentido ou explicação, um bando de ovelhas surge do nada, atravessa a sala e a força estranha desaparece de repente. Todos conseguem sair da sala e da casa. Recompõem-se reassumindo suas atitudes de elite da comunidade. Em seguida mandam celebrar uma missa em agradecimento ao Senhor por terem se livrado daquele terrível pesadelo. Além do grupo, são convidados aqueles que geralmente orbitam em torno da classe dominante. Finda a missa, eles percebem que não conseguem sair da igreja. Cena final: externa da igreja à distância, portas abertas sem que ninguém consiga sair e pela frente dela passa o rebanho de ovelhas, sem entrar. O rebanho sai desaparecendo pela lateral da tela. The end.
Discutir o que? A degradação da classe dominante diante de uma ameaça, real ou imaginária? Todos sabemos que é assim. Debater a natureza ou simbologia da força que impediu a todos de saírem da sala até que descessem ao fundo do poço moral? Questionar o significado das ovelhas naquele cenário e qual a sua função? Considerar uma intervenção divina? Buñuel era ateu até a unha do pé. E quando –ou se- finalmente chegássemos a alguma percepção em comum, transcenderíamos a discussão para a ampliação do mistério, acontecido dentro da igreja? Não. Naquela noite isso não seria possível. Talvez a certeza de não chegarmos a conclusão alguma, talvez o medo de nunca mais conseguirmos sair do Varandá, talvez tudo isso junto e somado ao espanto diante do filme de Buñuel fez com que naquela noite não houvesse discussão alguma sobre O Anjo Exterminador.
Vicente logo achou uma morena que sorria o tempo todo para ele e sumiu junto com ela. Herbert e mais alguém alegaram sono profundo acompanhado de dor de cabeça e foram embora pra casa. Eu fiquei mais um pouco bebericando uma cerveja até que se aproximou de mim uma mocinha muita alva, de grandes olhos escuros, corpo miúdo e quase magro, cabelos de cor indefinida. Usava um vestido branco de tecido transparente, revelando uma mínima calcinha também branca e nada mais além das sombras e texturas do corpo. Sob a luz azulada do Varandá parecia volátil, uma entidade, um anjo saído da adega local. Sentou-se ao meu lado perguntando se eu queria mesmo ficar sozinho. Respondi que não e ela me disse que conhecia um lugar ali pertinho, legal pra ver o sol nascer.
Paguei a cerveja e fomos para um pequeno quarto com vista para a Baía de Todos os Santos. Na manhã seguinte eu me perguntava se viver não era mais simples que entender a vida.
Os acontecimentos aqui narrados são imaginários e qualquer semelhança com coincidências terá sido fatos reais.
Se entornaste a nossa sorte pelo chão, / se na bagunça do teu coração, / meu sangue errou de veia e se perdeu. Como, se na desordem do armário embutido, /meu paletó enlaça o teu vestido /e o teu sapato ainda pisa no meu. Como, se nos amamos feito dois pagãos, /teus seios ainda estão nas minhas mãos, / me explica com que cara eu vou sair. Não, acho que está te fazendo de tonta, /te dei meus olhos pra tomares conta, /agora conta como hei de partir. A perplexidade masculina diante da mulher que não o quer mais embota tenham feito sexo exaustivamente. Coloca-se também a responsabilidade jogada sobre ela -mais uma vez- por todo o sofrimento masculino. “Ela” entornou a sorte pelo chão, é “dela” a bagunça no coração, responsável pela perda dos mais elevados sentimentos do homem. ... Chico Buarque ao meu ver atinge o máximo de definição desta visão decepcionante, passiva e submissa da mulher numa música praticamente inédita, da qual não conheço qualquer gravação. Seu título é Umas e Outras. ... Até que ponto Chico Buarque de Hollanda, o eterno objeto de desejo das mulheres brasileiras, consegue levar o visível machismo embutido em sua obra? Até onde este machismo reflete uma filosofia própria ou é um grito melódico de socorro pelo casamento que se destroça um pouco mais a cada dia?