30 dezembro, 2008

Chico Buarque é severo. (Parte 2)

Antes da consagração de A Banda, vencedora de um dos grandes festivais de música brasileira -no tempo em que ainda havia festivais e música brasileira- Chico Buarque já fazia sucesso com Pedro Pedreiro, uma de suas primeiras músicas gravadas. Mas ali sua referência à mulher era muito rápida, posicionando-a apenas em sua função reprodutora. (...) e a mulher de Pedro está esperando um filho pra esperar também... E pronto. Este parece ser o ponto de partida para uma visão crítica extremamente severa do papel feminino, através dos personagens de sua música, que se repetiria ao longo de sua obra com enorme freqüência.

Mais adiante, confirmando este papel de coadjuvante, a companheira do operário da construção civil seria mais uma vez citada em sua obra. Em Construção ela reaparece rapidamente. Beijou sua mulher como se fosse a única (...) a última (...) lógico, (...) em versos que reforçam esta posição feminina secundária de ou mera figurante da ação e mantém as mulheres, ou pelo menos até aqui as mulheres de pedreiros, nesta condição. A visão total da mulher submissa seria assumida plenamente por Chico em Cotidiano onde ela aparece de corpo inteiro. Talvez se trate da mulher ainda deste mesmo tipo de trabalhador, o pedreiro, pelos detalhes da sua vida, como a hora de acordar e o almoço, descrito na magnífica letra. Mas pode também ser a mulher de qualquer operário. Todo dia ela faz tudo sempre igual, / me sacode às 3 horas da manhã, / me sorri um sorriso pontual / e me beija com a boca de hortelã. / Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar / e estas coisas que diz toda mulher, / diz que está me esperando pro jantar / e me beija com a boca de café. / Todo dia eu só penso em poder parar, / meio-dia eu só penso em dizer não, / depois penso na vida pra levar / e me calo com a boca de feijão. / Seis da tarde como era de se esperar, / ela pega e me espera no portão, / diz que está muito louca pra beijar / e me beija com a boca de paixão. / Toda noite ela diz pra eu não me afastar, / meia-noite ela jura eterno amor / e me aperta pra eu quase sufocar / e me beija com a boca de pavor. A submissão aí é clara, sem metáforas. A mulher cumpre todas as suas supostas obrigações domésticas, de companheira e fêmea, motivada explicitamente pelo pavor de que o seu parceiro a deixe. Este pânico pela perda do parceiro, já fora do universo dos tijolos e cimento, encontra sua expressão máxima em outra obra prima, criada anos depois e imortalizada por Elis Regina: Atrás da Porta. A mulher ao perceber no companheiro que (...) e o teu olhar era de adeus (...) me arrastei e te arranhei e me agarrei nos teus cabelos, nos teus pelos, teu pijama, nos teus pés, ao pé da cama (...) no tapete, atrás da porta, (...) te adorando pelo avesso, só pra provar que ainda sou sua. Aí ela se anula plenamente, rasteja pelo chão onde o homem pisa, ocupa o lugar da vassoura atrás da porta e desaparece. A esta altura, a condição da mulher de criatura submissa na música de Chico Buarque já estava consolidada e finalmente deixou os lares formados por pedreiros e outros operários para se espalhar por diversas outras áreas da sociedade, ainda que, por enquanto, presa ao cosmo do proletariado.

Ela, a submissão, passa a estar presente como condição contínua da mulher em diversos momentos e situações, mesmo que cercada de romantismo, como em Com Açúcar Com Afeto (...) fiz seu doce predileto, pra você parar em casa. Agora o homem já é um possível mecânico, pois ela diz adiante (...) no caminho da oficina há um bar em cada esquina, pra você comemorar, sei lá o que. O final da música dispensa comentários: Quando a noite enfim lhe cansa / você vem como criança, pra buscar o meu perdão / e ao te ver assim cansado, maltrapilho, maltratado, ainda quis me aborrecer / qual o que / logo fui esquentar seu prato / dou um beijo em seu retrato / e abro meus braços, pra você... Um brilhantismo único em poesia e melodia embora extremamente machista. E nem existem mulheres assim. Que se há de fazer. Até no próprio universo da música, no mundo do sambista, encontram-se indícios desta atitude de Chico em relação ao feminino. Em Amor Barato, por exemplo quando se pede à mulher amada (...) vem cá meu amor, agüenta o teu cantador, me esquenta porque o cobertor é curto ou ainda, na mesma música (...) nosso amor também pode ter seu valor, também é um tipo de flor, que nem outro tipo de flor, um tipo que tem, que não deve nada a ninguém, que dá mais que Maria Sem Vergonha. Mesmo quando é o homem que se dá mal no enredo das músicas de Chico, sempre existe uma insinuação a respeito da submissão e dependência femininas. Como na incomparável Trocando em Miúdos, em parceria com Francis Hime, na qual o homem é rejeitado e sai com a impressão de que já vou tarde, mas pede de volta (...) o Neruda que você me tomou e nunca leu e mais enfaticamente sugere que ela (...) aceite uma ajuda do seu futuro amor, pro aluguel. Embora Chico aceite que ela já tenha evoluído um pouco, a ponto de chegar a pegar emprestado um Neruda, mesmo que nunca o tenha lido, a falta de intimidade da mulher com a cultura e sua incapacidade de manter-se por conta própria são insinuadas de forma bela, porém extremamente poderosa em seu desprezo, escondida magistralmente pela força da ironia. Curiosamente, tudo isso sempre levou e continua levando as mulheres ao êxtase. Talvez Nelson Rodrigues realmente estivesse com a razão. Continuamos depois com estas interpretações e outras citações muito mais severas. Chico também continua batendo firme e suave.

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