14 dezembro, 2008

Chico Buarque: Nelson Rodrigues com um violão (Parte Um)

Não sou biógrafo nem crítico de música. Não sou antropólogo cultural, não sou feminista militante nem pretendo denunciar nada. Até porque eu e Chico Buarque já quase fazemos parte do passado. Gosto de música e considero Chico Buarque -ainda- o maior compositor brasileiro de todos os tempos. Sei que interpretações estão sempre sujeita a erros. O que alguém pensou e disse pode ser completamente diferente daquilo que o outro escutou e entendeu. O conceito formado pode estar na mente do receptor e não do emissor da idéia. Este é um risco que corro. Quem não concordar com o que vai ler adiante desde já se sinta à vontade para as primeiras pedras. Este trabalho, dividido em seis partes, não pretende ser científico, social, sequer musical. São só registros e impressões de um ouvinte atento do compositor e do que ele disse. Não me interessa quem acabou o casamento de Chico (na verdade acho que foi Carlinhos Brown), porque ele torce pro Fluminense ou insiste em achar Cuba um exemplo de sociedade. Isto é papo de quem estudou na Rua Dª. Antonia nos anos 60. Fernando Henrique também passou por lá, mas a vida os colocou em papéis diferentes. Ainda bem. A machismo de Chico a que me refiro tem a ver com a minha, a sua mulher. A mulher que passa pelo corredor do shopping sem se ver refletida nas vitrines, que não se ilude quando o filho sai na página policial e que manda o marido à merda quando ele chega em casa com oito amigos pra almoçar. A mulher que na vida real chama a mim e a você de machão. Mas que desmaiava quando via Chico Buarque de Hollanda chegando com “aquellos ojos verdes”. Porque a vida, infelizmente, não tem o mesmo encanto que a arte. TODA MULHER JÁ SONHOU EM DAR PARA CHICO BUARQUE. A moça feia debruçou na janela, pensando que a banda tocava pra ela. A partir desta frase meio cruel escondida na letra de A Banda, Francisco Buarque de Hollanda iniciava um conturbado relacionamento público com o universo feminino, relacionamento este que se revelaria com o tempo, de extrema riqueza e constante aperfeiçoamento. Importante também é considerar o efeito que Chico Buarque provocou no coletivo feminino brasileiro embora jamais tenha se posicionado como um compositor romântico, um Roberto Carlos, por exemplo. Ao contrário. A primavera criativa de Chico Buarque se situou entre os meados dos anos 60 até os anos 80, acompanhando a longa noite de terror e crimes que se abateu sobre o Brasil a partir de 1964. A sua luta contra a ditadura foi um dos momentos mais ricos da cultura brasileira, quando junto com outros intelectuais de diversas áreas do conhecimento, usou do talento e da criatividade para atingir os brasileiros fardados que insistiam em calar e matar os brasileiros sem fardas. A intenção romântica de Chico neste período é esporádica, eventual. Quando a repressão achou que podia calar idéias com baionetas, Chico sob o pseudônimo de Julinho de Adelaide, atirou algumas das suas mais preciosas e poderosas pedras no telhado dos militares sem que estes, como era de se esperar, sequer percebessem. Mesmo sob o disfarce do nome e ainda mais dedicado ao combate político, Chico Buarque entretanto aqui e ali pontuava suas obras de um sotaque de romantismo inevitável para quem desenvolveu a sensibilidade ao ponto em que ele o fez. Talvez este conjunto de características de sua obra, aliada ao conjunto de características da sua personalidade, tenha estabelecido a sintonia entre a sentimento feminino e o seu sentimento, embora sua obra esteja longe de ser uma homenagem explícita à mulher como foi a do feminista Gonzaguinha. A receita reunindo temperos tão díspares como intelectual, guerrilheiro urbano, tímido, misteriosos olhos verdes, talentoso, bom de copo, fã de futebol, fiel em teoria à única esposa e polígamo na prática, paizão assumido e galinha de carteirinha, deu certo. Sendo ainda capaz de alinhar de forma desconcertante as palavras e as notas musicais com o aval, a cumplicidade e o sorriso paternal de Tom Jobim, não podia dar errado. Mas, pergunto: porque as mulheres nunca foram tão severas em relação à ótica do trabalho de Chico a seu respeito quanto o foram com Paulinho da Viola, por exemplo? O príncipe do morro com sua refinada presença, música primorosa, beleza masculina brasileira, elegância que resiste ao tempo, o charme de ser do morro e falar manso, jamais provocou lágrimas femininas e muito menos desmaios. E seu trabalho tem lirismo suficiente para isso. Já o paulistano Chico fez a platéia feminina do Teatro Castro Alves em Salvador (nos 80 do século passado), repetir cenas somente vistas em platéias dos Beattles. Mas aquele pessoal de Liverpool tinha mesmo a intenção de incendiar a meninada enquanto o gentil Chico, aparentemente não. Em cena parecia estar com medo daquilo tudo e tocava o violão com seu cigarrinho aceso entre o dedo mínimo e o anular da mão direita –o que já era motivo para declarações de paixão eterna- como se todo aquele escândalo, lágrimas, desfalecimentos e cabelos arrancados não fora por ele. Na mesma noite, na pequena boate do Yatch Clube, dezenas de distintas senhoritas literalmente se arrastaram pelo chão até ficar -mais uma vez literalmente- a seus pés, enquanto old green eyes cantava num show intimista. Mas aí já era muito mais tarde; muitas canções e muitos uísques depois. Chico já misturava a letra de Carolina com a de Januária, a platéia já misturava arte e realidade e a madrugada já misturava a noite com o dia. E o mistério da sedução machista estava apenas começando.

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