29 novembro, 2008

O Anjo Exterminado e o Anjo Exterminador

Às quatro da manhã, Rodrigo Sá Menezes convidava educadamente os boêmios mais renitentes a saírem da sua boate, o Anjo Azul, lindamente decorada com painéis enormes de Carlos Bastos. João Ubaldo Ribeiro protesta, toma os últimos goles de seu cuba libre e sai caminhando tranqüilamente pela Rua do Cabeça, cumprimentando os feirantes, atravessa o Largo 2 de Julho e mergulha no Sodré em direção ao Mercado Modelo, onde chega após uma pequena parada na casa de Maria da Vovó, pra ver umas amigas. No Mercado, já comendo o sarapatel de Bio, encontra o mestre Jorge Amado que conversa animadamente com Carybé e Mario Cravo, todos cercados por verduras e frutas. Silenciosa, Irmã Dulce passa recolhendo contribuições para seus pobres. Ruy Espinheira, Caetano e Gil, quietos num canto, escutam atentamente, recolhendo cada pedaço de sabedoria que escorregava das mesas. João Ubaldo junta-se a eles e começa a manhã de mais um sábado na cidade do Salvador. A cena, exatamente assim como está descrita, pode nunca ter acontecido, porém com algumas poucas variações e outros personagens tão ilustres quanto estes, certamente repetiu-se inúmeras vezes nos anos 50 e até quase o final dos 60. Rodrigo Sá Menezes, hoje publicitário, era proprietário do Anjo Azul, boate que reunia a inteligentzia e a boêmia baianas, em noites que atravessavam a quietude da cidade para desembocar no Mercado Modelo ou na 7 Portas, entre violões, poesias, grandes debates culturais e felicidade geral. O Anjo acabou e acabaram os intelectuais, a boêmia, o samba canção, as poesias, a quietude, a madrugada silenciosa, as casas das meninas e os saveiros chegando na rampa da manhã. Hoje, a noite de Salvador amanhece resfolegante, exausta diante de gols mil tocando axé music pelo porta-malas, explodindo a nova música sertaneja –o muar do sertão- em decibéis histéricos, em cocaína, engarrafamentos em portas de barzinhos sem caráter e prostitutas amadoras. Entulhada de restos de pizzas hut, big-macs, camisinhas, latas de cerveja, red bulls, e freqüentemente, sangue, muito sangue. Sem qualquer charme. Sem o mínimo vestígio de sentido, sabedoria e propósito. Com os pés em cima da poltrona no cinema, a provocação diante de tudo ou o olhar anestesiado diante da boquinha da garrafa, seja ela qual for e sirva para o que servir. Quantos novos Jorges, Ubaldos, Ruys, Caetanos, Gils e Carybés sairão da noite baiana de hoje ? Nenhum. Quem escreve, quem compõe, quem pinta, quem pensa ? Ninguém sabe. Se existem, não estão mais disponíveis como se costumava encontrar pelas madrugadas. Estão certamente enclausurados em suas casas, vagando na Internet ou refugiados em algum lugar seguro. Longe da horda amorfa e por isso mesmo escandalosa, que povoa a noite sem fazer a menor idéia de pra que ela existe. Houve um tempo, muito remoto, em que a noite trazia o medo do desconhecido e por isso os homens primitivos reuniam-se em bandos, faziam fogo e barulho até o amanhecer para espantar o perigo, as feras, os espíritos do mal, parecendo mais ou menos com o que acontece hoje. Depois o homem evoluiu e tornou-se íntimo da noite, retirando dela as respostas para as mais inquietantes perguntas, deslizando mansamente até a barra de novo dia e de uma nova descoberta. A observação da mecânica celeste abriu horizontes e o homem, percebendo-se parte de um sistema perfeito, procurou de diversas formas, a perfeição. A noite inspirou poetas e trovadores, os astros revelaram os mais escondidos segredos da alma e a bruma de cada novo dia revelava um mundo sempre em renovação. Quem sabe hoje estamos recomeçando um ciclo, quem sabe estamos tentando espantar novos fantasmas com a mesma fórmula dos velhos tambores, corpos pintados, danças tribais e rituais exóticos. Quem sabe serão os habitantes da nova noite, os homens modernos que primeiro perceberam a necessidade de voltar ao princípio paleolítico. Quem sabe o Anjo Azul tenha sido apenas um equívoco, apenas uma visão um pouco mais bem acabada das antigas cavernas e suas figuras rupestres, sem serventia alguma. Quem sabe a nova verdade não está nas vagas disputadas a tapas na frente das lojas Select. Talvez o novo ciclo de civilização seja essa violência e essa mesmice que se vê compulsoriamente por aí. Não sou arauto do passado, nem nasci há 10 mil anos atrás. Mal cheguei aos 60. Sou apenas um maior abandonado, um senhor de rua; sem estatuto, sem proteção e sem mais ter onde passar as noites.

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