14 novembro, 2008

O Zippo, o pocket Nº 1 e a ambivalência.

Houve um tempo em que uma mulher tinha certeza de estar diante de um homem, quando ele sacava do 1º bolso –aquele pequeno e dianteiro- de seu jeans Lee ou Levis, um reluzente isqueiro Zippo e acendia um Marlboro ou um Lucky Strike. De preferência riscando a perna da calça com o isqueiro. A sociedade em sua mutação constante mais recentemente oferecia à mulher, como arquétipo de homem, aquele sujeito desajeitado e de óculos, roupas surradas, barba por fazer, um exemplar do Le Monde debaixo do braço e os dedos amarelados pela nicotina dos cigarros Gauloises. Sem filtro. Woody Allen exagerou um pouco, mas era quase isso. Hoje, quando fumar tornou-se um ato quase criminoso e os fumantes vagueiam mundo afora em busca de um cinzeiro, como palestinos atrás da terra permitida, o estilo masculino resume-se em andar por aí com uma lata de Redbull bem visível e um som ensurdecedor na mala do carro. Humphrey Bogart, James Dean, Marlon Brando, Richard Burton, Lee Marvin, John Wayne e outros, hoje não passariam de repulsivos seres de costumes primitivos e perigosos para esta sociedade politicamente correta, hipoteticamente saudável e terrivelmente chata. Modelo de homem hoje, como disse Chico Buarque sobre a nata da malandragem, não existe mais. A AIDS briga nas estatísticas com o câncer de pulmão e o enfarto. A dengue e a direção praticada pelos não-fumantes alcoolizados, mata mais que tudo isso junto. A condição prolongada de estresse nas cidades abre as portas para qualquer doença. Claro que nada disso é científico, tudo se baseia instavelmente em números nem sempre confiáveis e quase sempre manipulados. A medicina –que hoje é uma ciência estatística- continua afirmando não ter compromisso com resultados, mas sim com métodos. Mas uma coisa é certa: a hipocrisia mata muito mais que tudo isso junto. Porque ela acaba com a dignidade e esta é uma coisa que quando se perde, além de ser para sempre, leva também outros valores indispensáveis à vida saudável em seu sentido mais amplo, que é o da saúde moral, o grande laboratório das manifestações saudáveis ou doentias do organismo. Em nome de uma suposta saúde física acabamos por abandonar a saúde dos relacionamentos e da própria sociedade. Desde que começamos a habitar este planeta, comemos, bebemos e fumamos de tudo. O churrasco é a primeira invenção culinária do homem primitivo, ao descobrir que o fogo tornava a carne dos animais um pouco mais agradável e menos indigesta. Ainda hoje povos se alimentam de insetos, o sushi desafia o cólera e pratos de sarapatel são disputados nas madrugadas baianas. Fuma-se cigarro de palha, de fumo de corda, de cravo, de alface, de maconha; fuma-se ópio, cachimbo, crack e tudo que possa ser queimado e fazer fumaça. Bebe-se chá de tudo e o álcool, produzido até de arroz, é vendido e bebido livre e alegremente. Bebemos sucos de qualquer coisa que possa ser liquidificada, desidratada e reidratada. Bebemos até Coca-Cola, que ninguém sabe ao certo o que é. E sobrevivemos. Sobrevivemos à Santa Inquisição, a duas Guerras Mundiais, uma Guerra Fria, ao Vietnã, às Malvinas, ao Canal de Beagle, ao Cambodja, ao Antrax, ao Iraque, a Bin Laden e milhares de outras ameaças. Também sobrevivemos à gripe espanhola, à tuberculose, ao tifo, à difteria, à diarréia e a cerca de 50 mil McDonald’s espalhados pelo mundo. Mas certamente não sobreviveremos como pessoas, às ONG’s montadas para arrancar dinheiro de governos coniventes; às religiões que arrancam os últimos tostões dos já pobres fiéis; aos empresários preocupados exclusivamente com o próprio bem estar; aos políticos que odeiam o povo; à imprensa comprometida com interesses multinacionais; a certos amigos que degradam todos à sua volta; ao mau-caratismo, à falência de valores morais, à falta de pensamento e noção de honradez; à mentira absoluta, ao egoísmo e ao desprezo pelo gemido de dor ou solidão que vem do apartamento ao lado. Ninguém tem carimbado na testa: “O Ministério da Saúde adverte: esta pessoa possui mais de 4.700 componentes nocivos ao relacionamento, e hipocrisia que causa dependência física ou psíquica.” Pois tudo isso mata e é contagioso. Isso mata a mim, a você; matará nossos filhos e os filhos deles. Porque as manchas da alma são infinitamente mais corrosivas que as do pulmão.